segunda-feira, março 27, 2006

Aparecimento do livro: O fascínio do livro impresso

No «prologo do autor a todo o genero de leitores» do seu vocabolario portugues e latino, o pader Rafael Bluteau explica ao «leitos mofino» como, desde a criação do mundo, foi dificil a comunicação do saber e como foram lentos os progressos que se verificaram na forma de o registar. Segundo o autor, desde as primeiras gravações feitas em pedra remontando aos tempos anteriores ao dilúvio, a escrita foi lentamente conhecendo novos suportes: folhas de palmeira, entrecascas de árvores, lâminas de chumbo, pastas de cera, peles de animais. Aprender era então uma tarefa difícil, mesmo para os grandes sábios da Antiguidade, «porque em muitos volumes se encerrava pouca doutrina, e se gastava mais tempo em desenrolar, que em ler as obras de um Autor». Só com a invenção do papel e da impressão, esses dois grandes «artifícios» que permitiram a edição de obras como a sua, os textos se tornaram mais acessiveis e se puderam constituir grandes bibliotecas para armazenar o saber. Reproduzidos por artes da tipografia, os livros tornavam-se, ao mesmo tempo, uniformes e múltiplos: chegavam em silultâneo a muitos lugares e «com inalteravel firmeza sempre dizem o mesmo». No tempo de Bluteau, então, os doutos deixaram de ter de correr mundo e busca de sabedoria, pois esta, quase instantaneamente, vinha ter com eles à loja dos mercadores de livros ou distribuída pelas estantes das bibliotecas. «Quando», escreve o autor do 'vocabolario... mostrando as vantagens do texto impresso relativamente ao manuscrito, «pelas escrituras dos Amanuenses se publicavam obras de engenho, gota a gota destilava das pernas o preciso antídoto da ignorância; mas agora, que de um jacto se tiram do prelo folhas inteiras, repentinamente doutas, brotam em cachões as fontes da sabedoria, e com perenes afluências a sede de saber se apaga».
A reprodução rápida e uniforme dos textos que alimenta o optimismo relativamente à propagação do saber assumido por Bluteau no seu «Prólogo» esteve tamém na origem do fascínio e da imensa literatura que, desde que foi inventada, a imprensa suscitou. Entre pensadores, escritores, bibliófilos, a reflexão sobre a imprensa confundiu-se com a reflexão sobre o escrito e sobre a sua história. O padre Bluteau enumera algumas das etapas dessa evolução nas formas de registar o conhecimento. É nessa longa genealogia que pode também ser inserida a antiga e a actual história do livro, hoje colocada numa encruzilhada de disciplinas e tradições de investigação. Tradicionalmente atenta ao impresso e à comunicação que este permitiu, em especial na época moderna europeia, ela estende actualmente o seu âmbito a uma multiplicidade de temas e épocas, do aparecimento do códice manuscrito até à actualidade, situando-se na confluencia de múltiplas áreas de estudo.
Ao debruçar-se sobre a divulgação de obras impressas numa área geografica e época determinadas (em Portugal, de 1715 a 1760), este trabalho vai também beber na referida tradição e na renovação que continua em curso na história do livro e da leitura. Ela traduz-se na intensificação da investigação um pouco por toda a parte, e Portugal não é excepção. Começarei, pois, por uma breve digressão teórica em torno de alguns temas que estiveram e estão em discussão nesta área.
André Belo in 'As gazetas e os livros'