quarta-feira, novembro 16, 2005

A Proibição do duelo, igreja e ideologia nobiliária

A Proibição do duelo, igreja e ideologia nobiliária
Di Giancarlo Angelozzi in
"Il Concilio di Trento e il Moderno"
a cura di Paolo Prodi e Wolfgang Reinhard
Bologna, Il Mulino, 1995, pp. 271/308

Breve comentário
A discussão sobre a proibição e condenação do duelo é uma matéria importante do Concilio de Trento, bem como, delicada e controversa da literatura canónica. No que diz respeito aos sistemas de valor e ao código comportamental da igreja no período medieval e da primeira parte da idade moderna, o duelo configurava-se como uma forma ambivalente de recurso à violência como um direito natural. Desde o século XIII até ao século XV, o duelo era visto como uma forma de defesa da honra chegando mesmo, neste sentido, a dar algum estatuto social a quem participava nele. Esta matéria aparece na última fase do concílio, em 1562, por iniciativa dos prelados Ibéricos. Na altura, o Bispo de Tortosa, Martinho de Córdoba tinha sido incumbido de apresentar uma proposta de reforma da igreja. O documento que foi enviado a Roma era dividido em 67 pontos, uma proposta autónoma do Bispo espanhol, com uma parte de um prelado não identificado. No ponto 60 figurava, então, uma proposta de proibição do duelo.
O extenso debate foi decisivo durante a época moderna nos aspectos cultural, social e político. Este texto, por sua vez, aborda especificamente o papel da igreja no confronto do duelo em defesa da honra, aspecto central pela sua implicação psicológica, social e política na ideologia cavaleiresca desde o período medieval até então.O autor Giancarlo Angelozzi iniciou o seu trabalho a partir do dominicano Raymond de Penafort, que na sua Summa aborda este tema separadamente. No livro II de homicídio, na secção de torneamentis e no livro III de scandalo, na secção de inquisitionibus et purgationibus. O argumento vem tratado no livro II, porque nos duelos tal como nos torneios, verificamos frequentemente homicídios privados de motivação racional. No livro III, vem tratado, porque o duelo se distingue de qualquer outra forma de combate. Esta é considerada uma forma muito particular de purgatio vulgaris. O duelo é considerado absolutamente ilícito não só para o clero, bem como para os leigos. A tal purgatio vulgaris é considerada por Penacort uma invenção do demónio. A Summa de Raymond de Penafort e do cardial Enrico de Susa condena pontualmente a argumentação referente a uma posição no confronto do duelo que podemos definir como rigorosa. Segundo Raymond de Penafort e Enrico de Susa (cerca de 1220) o duelo é sempre ilícito.
Na Summa de outro dominicano, Giovanni di Friburgo (1290), o duelo é abordado de forma mais permissiva. Se para Raymond de Penafort quem morresse num duelo jamais poderia ser sepultado em terra sagrada, para Giovanni di Friburgo, se a participação num torneio não constituísse um acto pecaminoso, nem fosse para enaltecer a própria bravura, seria aceitável, porque poderia servir para aprender a manusear uma arma no sentido de defender a pátria e combater os infiéis. Para ele era excessivo afirmar que o duelo era ilícito em todas as circunstâncias. Por exemplo, no caso de um infeliz acusado injustamente e condenado à morte, este, devia-se deixar enforcar em vez de aceitar o duelo? Para Friburgo era legítimo aceitar o duelo quando não se via outra hipótese para salvar a própria vida. Esta proposta de Giovanni di Friburgo constitui o cerne do núcleo teológico-jurídico antes de se constituir a assimilação do duelo em defesa da honra e em caso de legítima defesa, não só da própria vida mas também dos próprios bens. Pode-se dizer que depois do decreto tridentino se esperava que a discussão fosse definitivamente encerrada. Realmente, pode-se ainda dizer que no interior da igreja o concílio concluiu o debate sobre o duelo na época medieval, mas relança o debate sobre o duelo em defesa da honra na época moderna.
Com efeito, o texto do decreto tridentino continha um carácter ambíguo: Referia-se ao duelo público e solene, isto é, ao duelo como acto cultural e ao duelo por defesa da honra, pratica social sempre legitimada. Deste modo, uma condenação justa, era sempre difícil de encontrar. Existia uma distinção entre duelo público e privado. Uma distinção entre o duelo que era feito no calor da ira e o duelo originado por uma motivação real. O único motivo que aparentemente podia existir para haver duelo era a afronta pública, uma vez que quem não respondia a uma injúria perdia a honra. Depois de algum confronto de opiniões, ficou concluído que o duelo seria proibido de ambas as formas, tanto o duelo público, como o duelo privado, tendo em conta que em ambas as situações o individuo se socorria de violência para se defender do perigo de vida, própria e alheia.
Apesar de alguma discórdia, acaba por se definir uma condenação para esta prática: Concílio Rectum - em 1562 a Bula Ea Quae (Pio IV): «Extermine-se inteiramente do mundo Cristão o detestável costume dos desafios, introduzido por artifício do demónio para lograr ao mesmo tempo que a morte sangrenta dos corpos, a perdição das almas... Os que entrarem em desafio e os que se chamam seus padrinhos, incorrem à pena de excomunhão e da perda de todos os seus bens, bem como à infâmia perpétua e, devem ser castigados segundo os sagrados cânones, como homicidas. Se morressem no mesmo desafio careciam perpetuamente de sepultura eclesiástica».
No entanto, o duelo como legitima defesa da honra e como pratica tão enraizada nos costumes da época, acaba por se sobrepor a qualquer condenação, prolongando-se assim até ao final do antigo regime.

Conclusão

A proposta de Wolfgang Rheinhard de avaliar e trazer os dados do Concilio de Trento até à modernidade, adoptando a dupla distinção entre modernização relativa e absoluta, entre efeito intencional e não intencional verifica-se, singularmente a propósito, no caso do decreto sobre o duelo. Se colocado no preciso e limitado contexto do trabalho conciliar e, se examinado com o olhar no objectivo intencional, este tema aparece tratado de forma inovadora. De resto, não acarreta um juízo limitativo ao alcance do decreto, não fosse o facto de passar a compreender quantos padres iriam condenar o duelo em defesa da honra, atitude considerada corajosa, o que colocava a igreja numa posição negativa no confronto de um aspecto particularmente importante e problemático da ideologia nobre-cavaleiresca. Ao fim, prevalece a opinião do clero. O decreto aparece fruto de um compromisso de alto nível entre posições fortemente diferenciadas e, tudo somado, de grande relevância.
Visto nesta perspectiva, o capitulo XIX do decreto da reforma, não obstante a sua inegável ambiguidade, representou um momento importante do contributo da igreja no processo de monopolização da violência por parte do Estado, que para o bem e para o mal, constitui um retrato da modernidade.