quarta-feira, julho 30, 2003

Para mim o Documentário é...

O filme documentário tem uma história recente. Ao contrário do que mais das vezes se afirma o documentário não nasceu aquando do cinema. As primeiras experiências com as imagens em movimento tinham apenas por objectivo registar os acontecimentos da vida quotidiana das pessoas e dos animais. Assim, o contributo dos pioneiros do cinema para o filme documentário foi o de mostrar que o material base de trabalho para o documentário são as imagens recolhidas nos locais onde decorrem os acontecimentos. Ou seja, é o registo in loco que encontramos no inicio do cinema que constitui a raiz em que assenta o documentário.
Foi apenas durante os anos 20 que se criaram as condições necessárias para a definição do género documentário, nomeadamente por Robert Flaherty (1884-1951) e Dziga Vertov (1895-1954). Estes dois confirmaram que é absolutamente essencial que as imagens do filme digam respeito ao que tem existncia fora do filme, ou seja, o cineasta deve sair para fora do estúdio e registar in loco a vida das pessoas e os acontecimentos do mundo. No entanto, a esta obrigatoriedade o documentarista pode responder de modos diversos. Os dois cineastas mencionados são disso exemplo: se o primeiro com «Nanuk», pedia às pessoas para se manifestarem para a câmara, para se representarem a si mesmas, o segundo com «o homem da câmara», pretendia captar as pessoas na sua vida quotidiana de preferência sem que se apercebessem que estavam a ser filmadas, para além disso, é a partir destes dois cineastas que se estabelece como absolutamente essencial que esse material ( imagens recolhidas in loco) seja submetido a uma reflexão. Este momento assume especial relevo na montagem do filme. Um documentário não é um mero «espelho da realidade» não apresenta a realidade «tal qual», ao combiarem-se e interligarem-se as imagens construídas in loco está-se a construir e a dar significado à realidade, está-se o mais das vezes não a impor mas a mostrar que o mundo é feito de muitos significados. Isto conduz-nos àquilo que se pretende que um documentário seja, que se exclua o voyeurismo ou mero sensacionalismo a favor do questionamento e da discussão através da construção de argumentos (em especial, e no meu entender, de modo visual - fazendo uso das imagens).
Resumidamente, Robert flaherty e Dziga Vertov mostraram que é possível existir um filme onde o registo do mundo e a reflexão desse mundo e/ou a reflexão desse registo ocupam um lugar privilegiado.
Mas, o documentário é um género com uma identidade própria que só conheceu as condições necessárias para a sua afirmação enquanto tal nos anos 30, com o movimento documentarista britânico e, em especial, com a sua figura mais emblemática: John Grierson (1898-1972). Aqui encontramos não só o reconhecimento do filme documentário enquanto género autónomo e distinto dos restantes filmes como uma afectiva produção de filmes designados por documentário.
Nos seus escritos, nomeadamente no artigo que data de 1932.34 intitulado «First Principles of Documentary» (in Forsy hardy, Grierson on documentary, London, Faber&Faber, 1979) Grierson discute e estabelece para o documentário características que o distinguem da restante produção fílmica. Antes de mais, diz tratar-se de um filme de categoria superior em relação à restante produção que também um material retirado da realidade. Nos «filmes de factos» («factual films») impera a mera descrição e exposição de factos.
Pelo contrário, no documentário, por ele definido como o «tratamento criativo da realidade», há combinações, re-combinações e formas criativas de trabalhar o material recolhido in loco.
Assim, o documentário trabalho os seus temas de modo criativo revelando algo sobre os fenómenos, no caso, os fenómenos tratados eram os problemas sociais e económicos vividos, na Grã-Bretanha, nos anos 30. As temáticas eram apresentadas segundo um determinado ponto de vista. Grierson fala-nos em «revelar a realidade do objecto tratado», em «criar uma interpretação». Essa revelação e interpretação que poderemos designar por ponto de vista, recai sobre as temáticas abordadas nos filmes e registadas in loco. Grierson entendia que os documentários deviam ter uma função social e pedagógica; deviam, ser, sobretudo, um instrumento de educação pública.
A produção da sua «escola» 88888(instalada nas film Units subsidiadas pelo governo) dependia do financiamento governamental pelo que era suposto que os filmes efectivamente produzidos justificassem o financiamento recebido. Os problemas sociais e económicos eram apresentados como sendo um mero momento de crise que o país estava a atravessar e que estava a ser solucionado pelo governo. Nos filmes eram apresentadas as soluções governamentais para cada um dos problemas abordados. A estrutura «problem-moment» dos documentários dos anos 30 tinha como principal característica o uso da voz em off, ao longo de todo o filme. Embora Grierson reconhecesse que para cada uma das temáticas que possam ser abordadas é possível organizar o material a ela respeitante de diversas formas e que a cada uma dessas formas correspondem abordagens ou pontos de vista diferentes, sobre um mesmo tema, esse reconhecimento inicial foi imediatamente esquecido pela força com que defendeu para o documentário uma função social.
Para além de defender um filme que tinha a obrigatoriedade de apresentar «uma interpretação» sobre a temática em causa, Grierson confere especial relevo ao papel do documentarista como autor criativo.
Estando o documentário afastado da mera reprodução dos acontecimentos, o autor do filme intervém de um modo criativo na concretização do filme, assume-se como artista. No entanto, esta intervenção é controlada pelo próprio Grierson enquanto produtor das Film Units (por exemplo, a BEM-Empire Marketing Board e a GPO-General Post Office) onde desenvolveu o seu trabalho no sentido de garantir o financiamento estatal. Na escola de Grierson a criatividade é pois, confrontada com o patrocínio governamental.
Com Grierson ficou definitivamente clarificado que, para chamarmos documentário a um determinado filme, não basta que o mesmo nos mostre apenas o que os irmãos lumière nos mostraram: que o mundo pode chegar até nós pelo olhar da câmara. É absolutamente necessário que o autor das imagens exerça o seu ponto de vista sobre essas imagens. É necessário o confronto de um olhar: o olhar do documentarista. É também necessário que o resultado final, ou seja, o documentário, seja o confronto entre esses dois olhares: o da câmara e o do documentarista. Para além disso, o documentário deve pautar-se pela criatividade quanto à forma como as suas imagens, sons, legendas ou quaisquer outros elementos, estão organizados.
Concluindo, podemos dizer que o documentarismo assenta em três princípios: a obrigatoriedade de se fazer um registo in loco da vida das pessoas e dos acontecimentos do mundo, deve apresentar as temáticas a partir de um determinado ponto de vista e, finalmente, cabe ao documentarista tratar com criatividade o material recolhido in loco, podendo, combiná-lo e re-combiná-lo com outro material (por exemplo, legendas, outro tipo de imagens, etc.).
Estes princípios que têm como suporte o passado histórico do documentário marcam a identidade do filme documentário; trata-se de um filme possuidor de um estilo de produção próprio e distinto da restante produção fílmica. No entanto, as características que a escola Grierson associou ao documentário e que não lhe eram de facto inerentes marcaram-no profundamente. O documentário ficou conotado como sendo um filme de responsabilidade social onde predomina a voz em off (esta é uma das razões porque o documentário é geralmente confundido com a reportagem) de tom sério, pesado e, consequentemente, vulgarmente entendido como maçador e aborrecido. Ao apresentar-se como tal apenas ganhou nos últimos anos nada mais que uma forte marginalização. Os estereótipos que lhe estão associados (por exemplo, supor-se que as problemáticas sociais são as temáticas mais adequadas para serem tratadas pelo documentário) assentam nacessariamente na herança que a escola de Grierson lhe legou.
O documentário deve assumir-se e ser entendido sempre como um ponto de vista, como um filme que apresenta e constrói argumentos sobre o mundo. Trata sempre aprofundadamente os seus temas, estando, por isso, vocacionado para promover a discussão sobre determinado tema, respeitar as aspirações, expectativas e motivações daqueles que filma (e não colocar-se, como fazia a escola de Grierson, acima dos temas dando apenas «voz» às soluções governamentais para os problemas concretos vividos pelas pessoas comuns). O documentário deverá pois, entrar na era pós-Grierson.
Outra questão importante e que é muitas vezes associada e discutida em documentário é o facto de lhe ser inerente uma certa reivindicação da evidência das suas imagens. Ora, no meu entender esta questão está antes de mais e no essencial, próxima do facto de ser necessário ao documentário reivindicar a obrigatoriedade de usar material recolhido in loco. No filme The Thin Blue Line de Errol Morris (1987) sobre Randall Adams que cumpre uma pena de prisão perpétua por um crime do qual afirma estar inocente, apresenta-se a arma do crime sob o fumo branco, ou seja, de modo quase pictórico. Ao apresentar-se assim descontextualizada, fica certo que o documentário não nos pode assegurar a autenticidade da evidencia da imagem. Podemos então concluir que o documentário para ser considerado enquanto tal não necessita de reclamar uma relação próxima com a realidade. Estamos perante um filme fundamental, um filme que solicita uma constante inovação e experimentação de formas e conteúdos, estes são-nos muito próximos. E, se as temáticas tratadas dizem à vida das pessoas e aos acontecimentos do mundo a sua forma depende directamente da criatividade do documentarista. Embora não seja aqui tratada há uma questão importante a ter em consideração no documentarismo, refiro-me ao facto de ser necessária uma atitude ética, essencialmente dirigida aos intervenientes do filme.
Por oferecer uma reflexão aprofundada sobre determinado tema, o documentário desencadeia um envolvimento crítico sobre esse mesmo tema e contribui, enquanto espaço de formas e conteúdos inesgotáveis, para uma melhor compreensão do mundo em que vivemos. O seu olhar não se reduz ao que é obvio, antes leva-nos a olhares diferentes sobre o mundo e permite-nos olhar o mundo de forma diferente. Por esta razão há um apelo ao debate de ideias, à reflexão e ao envolvimento critico confrontados que somos com experiências diversas, sejam elas sociais ou pessoais.
Tendo como ponto de partida o estilo do filme documentário enquanto género, poderemos perspectivar o seu desenvolvimento no sentido de se tornar um produto interactivo. Este será um de entre os possíveis desenvolvimentos para o documentarismo; no caso, trata-se da possibilidade de uma produção renovada e inovadora. As novas tecnologias estão aí, assim como a possibilidade de criação de novos produtos multimédia; para além disso, estamos perante de um novo produto multimédia que tenha como referencia, ou melhor, que embora se possa enquadrar no género documentário tenha como principal característica aquilo que distingue as novas tecnologias dos restantes media: a interactividade.
Após os anos 30, a revolução tecnológica que decorreu nos anos 50/60, e que consistiu na introdução e utilização de câmaras de filmar e som síncrono portáteis, é um dos aspectos mais importantes que se pode destacar na história do documentário. Esta nova tecnologia permitiu, por exemplo, a realização de entrevistas de rua (como é disso exemplar o filme de Jean Rouch intitulado «Chronique d'un Été», 1960. Este novo equipamento que substitui o uso dos 35mm permitiu uma maior e diversificada produção de documentários. Novas estratégias, novos estilos, novas formas ganharem vida. São disso exemplo marcante o « cinema directo» americano, também denominado «the-fly-on-the-wall» e o «cinema-verdade» também denominado «the-fly-on-the-soup» inicialmente desenvolvido em França. A diversidade resultante deste equipamento tem apenas um único motor a criatividade do comentarista. Uma criatividade que tem com o novo equipamento a possibilidade de se expandir. No caso, com o aparecimento do equipamento portátil tornou-se possível e oportuno desafiar e apresentar alternativas à omnipotente voz em off tão característica da escola griersonina, apostando, por exemplo, em dar «voz» ao cidadão comum.
Se a viragem tecnológica dos anos 50/60, que consistiu na portabilidade e sincronismo dos equipamentos, teve uma importância primordial na história do documentário, hoje somos testemunhas de uma outra viragem tecnológica, nomeadamente, a abolição do suporte analógico a favor do suporte digital, utilizado pelas tecnologias informáticas. Esta viragem não será de todo ignorada pelo documentarismo. Para o documentarista as tecnologias informáticas apresentam-se como mais um suporte apropriado para o «tratamento criativo da realidade».
Antes de mais, é essencial que a utilização das novas tecnologias seja alargada a diferentes áreas, e o documentarismo deverá ser uma delas. Acredito que daqui resultarão benefícios para o documentarismo. Este novo equipamento, à semelhança do que aconteceu na década de 60, requer e encontre-se disponível para a intervenção criativa do documentaria. E, embora possa ser demasiado determinista responsabilizar o surgimento de novas práticas com o surgimento do novo equipamento, trata-se sempre de um novo momento em que, pelo menos, se confirma que o documentário é um género potencialmente vocacionado para tratar os mais variados temas dos modos mais diversos. No entanto, o documentário permanece o mesmo, pois é-lhe já reconhecida uma identidade e estatutos próprios. Se com a anterior viragem tecnológica o documentário deixou de ser exclusivo no ecrã de cinema (35mm) para passar para o ecrã da televisão (vídeo) agora com a nova viragem tecnológica o documentário surgirá noutro ecrã: o do computador.