quarta-feira, julho 30, 2003

DOSSIER TEMÁTICO

DOENÇAS PSIQUIATRICAS


INTRODUÇÃO

Na verdade, a questão das emoções remonta mesmo a Aristóteles e teve, desde esse tempo, os seus respeitáveis estudiosos. Aristóteles advogava a moderação nas emoções e Cícero dissertou sobre os aspectos benéficos delas como garantia de uma vida equilibrada, segundo o ideal aristotélico. Mas é quase ilimitado o número de pensadores ocidentais que ao longo dos séculos reflectiram sobre o papel das emoções na existência humana: Espinosa, Pascal (quem não conhece a famosa frase «o coração tem razões que a razão não entende?»), Decartes (escrevendo sobre as «paixões da Alma»), David Hume (vendo a razão como escrava das paixões), Thomas Hobbes (que concebia as paixões como formas de apetite e de aversão), John Locke (que desenvolveu mesmo uma psicologia «sensacionalista»), são alguns dos citáveis. No mundo do pensamento analítico, a psicologia, ao tornar-se independente da filosofia, tomou a si o estudo das emoções. Nesta área, bastaria mencionar William James e os seus clássicos ensaios «What Is An Emotion?» e «The Sentiment Of Rationality» (1897), embora antes dele tivesse já surgido – inesperadamente para os menos avisados – um Charles Darwin com o seu famoso tratado The Expressios of the Emotions in Man and Animals (1872). No mundo da chamada «filosofia continental», os existencialistas e fenomenólogos dedicaram considerável parte da sua reflexão ao estudo das emoções. Kierkegaard, Nietzche (em O Crepúsculo dos Deuses, Nietzche afirma que «a função da razão é permitir a expressão de certas paixões a expensas a outras. A moralidade é um conjunto de princípios que restringe as paixões; uma moralidade bem sucedida é a que restringe apenas as paixões estupidificantes, que podem ser fatais, na medida em que arrastam a vítima com o peso da sua estupidez»), Husserl, Sartre, Heidegger, são apenas alguns dos nomes entre os mais conhecidos. Para trás ficou propositadamente Platão que, na República, sintetizava já maravilhosamente a tese de Goleman ao definir justiça nestes termos: «Não apenas força, mas força harmoniosa, desejos e homens caindo naquela ordem que constitui inteligência e organização... não o direito do mais forte, mas a harmoniosa união do todo.»
Nas últimas décadas a filosofia voltou a retomar a questão das emoções. Lembro-me de um filósofo da corrente fenomenológica, Robert C. Solomon, cujo livro The Passions. The Myth and Nature of Human Emotion (1976) conheceu larga difusão. Nele o autor defendia, em jeito de resumo da tese do livro, que «as emoções são a força viva da alma, a fonte da maioria dos nossos valores, a base da maioria das outras paixões». E mais adiante: «Diz-se que as emoções distorcem a nossa realidade; eu defendo que elas são responsáveis por ela. As emoções, dizem, dividem-nos e desencaminham-nos dos nossos interesses; eu defendo que as emoções criam os nossos interesses e os nossos propósitos. As emoções, e consequentemente as paixões em geral, são as nossas razões na vida. Aquilo a que se chama "razão" são as paixões esclarecidas, "iluminadas" pela reflexão e apoiadas pela deliberação perspicaz que as emoções na sua urgência normalmente excluem».
Mais recentemente, um importante sector da filosofia analítica abriu o flanco à interdisciplinaridade. O livro Explaining Emotions, de Amélie O. Rorty, penetrou largamente em diversas áreas de investigação e reflexão nas Ciências Sociais e Humanas. Mais preso ao diálogo com os filósofos analíticos, mas também dentro desta abertura ao estudo das emoções, enquadra-se o frequentemente citado The Racionality of Emotions, do luso-canadiano Ronald De Sousa, (1991). No campo da ética particularmente, a crescente atenção à problemática das virtudes tem levado a um ressurgimento de interesse por essa área da realidade impropriamente designada por irracional. (Em abono da verdade, tanto nas ciências sociais como na filosofia, foi sempre preferida a designação de «não racional» por se reconhecer não se tratar de nada necessariamente irracional.) São também variados os exemplos de livros nesse domínio. Recordarei aqui um especialmente significativo por o seu autor ser um nome respeitável no mainstream das ciências Sociais americanas – James Q. Wilson, The Moral Sense (1993). Wilson, por sua vez, recupera a obra The Theory Of Moral Sentiments, de Adam Smith (1976), e dela faz um importante ponto de partida para as suas teses.
Significa então tudo isto que é, afinal, muito recente o hiato estabelecido entre o mundo da racionalidade e o do não racional – foi mesmo no século XX que, com o positivismo lógico e a filosofia analítica, ele atingiu a profundidade que hoje se conhece. A. J. Ayer (1936) terá aberto consideravelmente o fosso ao afirmar que os argumentos de ordem moral, ao contrário do que acontece por exemplo com a teoria da gravidade, não podem ser verificados cientificamente e não passam portanto de «ejaculações ou comandos», «puras expressões do sentir» sem qualquer validade objectiva. Surgiram assim os emotivistas, com a sua teoria emotivista da ética, que viria a receber a sua expressão máxima nas décadas de 50 e 60, tendo a si associadas, entre os mais influentes, os nomes de C. L. Stevenson e R. M. Hare.
Concomitantemente, as Ciências Sociais, no empenho de «cientifização» dos seus diversos campos de pesquisa, foram-se afastando de toda a problemática que pudesse causar dano à sua instauração como ciências rigorosas. O território das emoções aparecia ora como areia movediça, ora de tal modo minado que tornava praticamente impossível dar cumprimento a um dos mandamentos básicos – medir e classificar factos. Em jargão de cientistas, terreno demasiado soft para inspirar credibilidade. Daí o afastamento para outros domínios mais sólidos como o do comportamento dos eleitores (no caso das ciências políticas), as experiências com ratos em laboratório (no campo da psicologia), ou ainda os estudos demográficos (na sociologia). Na psicologia especialmente, o predomínio do behaviorismo tenderá o aparecimento da sua perspectiva mais extrema com B. F. Skinner e o seu Beyond Freedom and Dignity (1971). Nos anos sessenta, o contexto político internacional não favorecia os estudos do indivíduo nem as suas abordagens dentro do paradigma do individualismo metodológico, preferindo-lhes o estudo da colectividade. Marx e os demais pensadores de esquerda foram os mentores do movimento alternativo ao status quo nas ciências sociais anglo-americanas. O indivíduo com os seus problemas comezinhos do dia-a-dia e, em particular, as suas dificuldades em se relacionar emotivamente com o outro, desde a família ao mundo do trabalho, tudo isso eram questões reserváveis à pop pssychology que ocupava as revistas de grande público e os suplementos de domingo dos jornais. Para tratamentos em mais profundidade, aí estavam os montes de volumes de How to... isto e How to... aquilo, dispostos a ensinar qualquer mortal a sistemática, metódica e infalivelmente fazer funcionar qualquer parte do corpo, ou qualquer indivíduo em qualquer espécie de situação.
Mas os sinais de mudança já estão no ar há uns bons vinte anos. De então para cá, multiplicaram-se indefinidamente, a ponto de surgirem crises profundas nas ciências sociais e humanas, acompanhando a crescente desilusão perante a engenharia cientifica do progresso social e individual – que de algum modo repetira neste século o optimismo do positivismo comteano oitocentista. De novo, ordem e progresso deixaram de ser um dado, o indivíduo reaparece como enigma escapulido das análises e sistemas. Como uma bola de mercúrio que se nos escapa dos dedos em minúsculas bolinhas para depois, instantaneamente, de novo se reunir num corpo único.
Foi pois neste cenário que começaram a proliferar os campos e subcampos de investigação do cérebro como a única fonte ao nosso alcance para a explicação de facetas fundamentais da vida humana. De novo, a série de que foram marcando avanços significativos é demasiado longa para referir aqui. E, no entanto, é nessa série que se enquadra aquela de que a maioria dos portugueses mais ouviram falar: O Erro de Decartes – Emoção, razão e cérebro humano, de António R. Damásio (1994). Ao demonstrar com êxito a impossibilidade de se separar a racionalidade das emoções, pois a ausência destas altera as decisões supostamente racionais, Damásio a construção de uma ponte agora bem mais solidamente construída nos seus alicerces e nas suas estruturas. Com efeito, o êxito deixou claro que está reaberta a estrada entre a razão e as emoções, agora porém com o aval da metodologia cientifica, hoje cada vez mais o melhor garante de que se não está a discorrer impressionisticamente ou simplesmente a fazer poesia ou literatura. O próprio Damásio escreveu: «o facto de distúrbios psicológicos, medianos ou intensos, poderem causar doenças do próprio corpo está finalmente a ser aceite, mas as circunstâncias e o grau em que podem fazê-lo permanecem por estudar. Claro que as nossas avós sabiam tudo isso: elas podiam dizer-nos como a dor, a preocupação excessiva, a ira, e tudo o mais eram possíveis de causar dano ao coração, provocar úlceras, destruir o corpo, e como nos deixavam mais vulneráveis às infecções. Mas isso considerava-se demasiado «popularucho», demasiado soft em termos de ciência, e assim era de facto. Levou imenso tempo para a medicina começar a descobrir que a base dessa sabedoria humana merecia consideração e investigação».
Entre as minhas anotações de leitura encontra-se ainda outra aparentemente estranha. Tem a ver com a caixa de Pandora e o papel da esperança e do optimismo nos empreendimentos da vida diária. Algumas páginas de Inteligência Emocional pareceram-me um caso de déjà vu, agora revestido em linguagem moderna. Foi um pouco como reler um discípulo de Henrri Bergson, Georges Sorel, William James e até o nosso Leonardo Coimbra, pensadores aonde Fernando Pessoa foi beber inspiração para a sua famosa Mensagem. O estado de decadência em que Portugal se encontrava na viragem do século XIX e principio do XX gerara um ambiente pessimista e de desesperança que só acentuava e prolongava a decadência. Pessoa propôs-se criar um mito forjado à volta da esperança capaz de galvanizar o povo português inspirando-lhe uma atitude construtiva de algo novo. Quem for ler os textos desses autores reconhecerá que as teses de Goleman mais uma vez se entroncam num rico e antigo filão onde os contributos são múltiplos. Para além da modernidade da formulação e roupagem no livro de Goleman, o impacte público por ele conseguido revela, porém, a novidade da existência de um terreno sequioso, e uma grande abertura de espirito a estas facetas da vida humana, não mensuráveis mas nem por isso menos reais.
A muitos leitores europeus ocorrerá estabelecer alguns paralelos entre o positivismo optimista e metódico de Daniel Goleman e o dos livros de Dale Carnegie. Não poderá negar-se que, subjacente àquele, existe uma confiança nas possibilidades de disciplinar a mente e de fazê-la ter um olhar positivo sobre as coisas de modo a, aos poucos, transformar a realidade. Mais do que a reedição de Carnegie, todavia, parece tratar-se do fenómeno que a expressão de Karl Popper tão bem captou e tão bem se enquadra na tradição americana do melhoramento metódico do mundo colectivo através da actuação individual – o social engineering. Quem quiser recuar ainda mais, verá talvez melhor através das lentes de Max Weber. O discurso de Goleman é, obviamente muito mais sofisticado do que nos tempos de Dale Carnegie ou de O. Sweet Marden, o que ajuda a aceitar mais facilmente essa faceta da maneira americana de estar no mundo. No cenário de leituras deprimentes, cínicas e desmobilizadoras que por aí correm, um pouco de sempre jovem voluntarismo e optimismo americanos não são de desperdiçar.
Mas nem tudo vai com optimismos e pensar positivo, como cada vez mais os próprios americanos vão reconhecendo pela experiência, ano após ano, de tentativas frustradas de reformas individuais e sociais. Foi, por exemplo, motivo de chacota nacional a divulgação de um inquérito em que se assessorava o grau de autoconfiança de estudantes do liceu quanto aos seus conhecimentos matemáticos, antes de entrarem numa competição internacional. Encabeçavam a lista. Vieram depois os resultados dos testes e não houve optimismo nem pensar positivo que os fizesse subir do último lugar da tabela. Os primeiros tinham sido os alunos coreanos que, em matéria de fé nos seus conhecimentos, estavam na cauda dos inquiridos.



ENTREVISTA

AS DOENÇAS QUE TEIMAM EM NÃO ACETAR!
«As doenças emocionais são escondidas pelo temor da discriminação». Esta frase polémica, foi chave para a investigação de uma situação desonrosa para os doentes do foro sensorial. Ela, serviu, também, para abrir portas a uma entrevista com o Psiquiatra, Professor agregado da Faculdade de Medicina do Porto e Professor de Psicologia médica, Dr. Rui Mota Cardoso, que começa por frisar que estas doenças não se ficam pelas complicações psicológicas ou físicas. Explicitando melhor, Mota Cardoso sublinhou que «as complicações podem ser comportamentais como o consumo de álcool ou de drogas, insónias ou até a agressividade. Podem ser até complicações sociais como a marginalidade, o obscentismo, os acidentes de trânsito ou de trabalho. O que é doença são todas as consequências do stress».

Susana Ribeiro – Então o stress não é doença?
Mota Cardoso – O stress em si é mais uma situação. Situação esta em que é exigido a um indivíduo que faça aquilo que ele não consegue fazer. Ultrapassa os seus limites e as suas capacidades naquele momento. Das duas uma, ou o indivíduo ultrapassa e consegue realmente crescer, o que é benéfico, ou o indivíduo não consegue, e então o stress é negativo porque o faz adoecer.
SR – O importante então, será combater o stress?
MC – Sim, mas o stress em si não é a doença, é a causa. É a situação. Todos nós estamos em stress, todos estamos em exigência, a chamada realização, simplesmente havia o bom senso daquilo que nos era exigido.
SR – Pode-se dizer que sempre houve stress, nos nossos antepassados, talvez com outro nome?
MC – Sim, há doutores até que consideram que a única coisa que difere o ser vivo do não vivo é o stress, é engraçado. Porque o stress é no fundo aquilo que o mundo exige ao ser vivo. Por exemplo, se eu estiver nu no Polo Norte, estou em stress, neste caso físico, porque estou numa temperatura a que me é difícil sobreviver. O que parece é que nos últimos tempos, o meio social, já não me refiro ao físico, exige às pessoas coisas cada vez mais intragáveis. Mais uma possibilidade de surgir a doença, e neste caso a doença é mais psicológica porque as exigências também são de nível emocional, a nível físico estão mais ao menos resolvidas.
SR – Neste sentido, as doenças causadas pelo stress são de resolução mais fácil do que as que são genéticas?
MC – Em alguns casos sim mas noutros nem sempre, por exemplo, a fim de considerar que um enfarte miocárdio muitas vezes é causado pelo stress, ou a úlcera gástrica, mas a nível psicológico há doenças que custam muito a tratar também, uma delas é o esgotamento, como lhe costumam chamar. O esgotamento é uma doença em que a pessoa perde, ou está convencida que perdeu as capacidades intelectuais e profissionais, além de se fazer acompanhar de uma anestesia local dos afectos, parece que não gosta de nada nem de ninguém e tem uma certa sensação de exaustão. Os esgotamentos a sério apanham principalmente pessoas que fazem aquilo que gostam, não são doenças de excesso mas sim de exaustão.
SR – Em média, quanto tempo costuma durar um tratamento a um esgotamento?
MC – Às vezes duram dois, três anos a curar. Como vê , é uma doença pesada do foro psicológico.
SR – Mas chegam a melhorar a cem por cento, ou ficam sempre com mazelas crónicas?
MC – Alguns casos dá para curar a cem por cento, mas outras vezes não, portanto não é uma brincadeira.
SR – Normalmente fica-se com tendências depressivas?
MC – Sim, ou então com grande astenia interpretada pelos doentes não só como astenia mas sim como a perda da capacidade intelectual, ou a capacidade de trabalho. Nós ao fazer-mos exames não nos parece que seja verdade, parece mais uma convicção do doente, que está tão abalado que se sente incapaz para tudo. De facto esta é uma doença muito debilitante e que apanha sobretudo profissões como professores, médicos, enfermeiros, jornalistas, e aquelas pessoas muito privadas que gostariam muito de fazer bem a sua profissão mas que se vão desiludindo, vai pela época dos 30 anos, época em que as pessoas já perderam os sonhos ou estão a perder.
SR – Mas também se verificam casos de esgotamentos na adolescência?
MC – Há sim, mas isso já é por causa de situações da própria adolescência.
SR – Ou mesmo até porque já nasceram pessoas depressivas?
MC – Mas estas não são consequentes do stress, algumas até são de cursos gerais e outras são genéticas.
SR – Sei de pessoas que normalmente têm as depressões na altura do Outono e da Primavera!
MC – São as tais depressões sazonais, que aparecem, como o Povo diz, no cair e no subir da folha, que para além de todas as perturbações que têm é também uma perturbação dos ritmos, e nós seres vivos temos ritmos, tal e qual como a natureza, por exemplo, temos o ritmo de acordar e de estar a dormir durante o dia, mas temos também ritmos sazonais, mesmo as pessoas que não são depressivas notam que na primavera e no Outono há uma diferença neles, pouco mais curtos, por exemplo, o ritmo cardíaco é um ritmo mais curto que um dia, bate 60 a 100 vezes por minuto. O nosso organismo tem ritmos e a doença depressiva é uma perturbação desses ritmos.
SR – Como se caracteriza um deprimido?
MC – Se reparar um deprimido acorda muito cedo, até mais do que custar-lhe a adormecer, adormece mas acorda atormentado demais.
SR – Também há casos em que lhes custa adormecer e depois ficam a dormir de dia?
MC – Sim , mas isso não é regra geral, de modo geral o problema é ao acordar e não a adormecer. Antigamente separavam-se as depressões em indogenas e reactivas. Indogenas, eram aquelas que se nascia com elas, ou acordava com depressões sem ter razão nenhuma, e reactiva era a pessoa que deprimia por problemas da vida. Hoje em dia é preciso um bocadinho a sobreposição, nas reactivas é preciso algo constitucional, e nas constitucionais é preciso alguma coisa que precipite. Na distinção clássica antiga, quem custava a adormecer era o reactivo, porque se deitava com as chatices do dia, mas o constitucional não, dormia com muita facilidade, mas com a doença, acordava muito cedo.
SR – Nestes casos de pessoas depressivas, estamos perante uma doença crónica?
MC – Sim e não. Quando nós falamos de uma doença depressiva grave, que antigamente chamava-mos melancolia, estamos a falar nestas depressões endógenas que na maioria dos casos é de facto constitucional para não dizer hereditária, nestas situações, não é que ela seja crónica no sentido de ficar para toda a vida, pode acontecer mas não é obrigatório, o que acontece mais é ser cíclica, ir embora e tornar a vir, circulo recorrente, mas classicamente os períodos sem doença são normais.
SR – E precisam de muitos medicamentos?
MC – Precisam, precisam de dois tipos de medicamentos; um, o próprio medicamento durante a fase da depressão. A depressão é extremamente dolorosa, a pessoa sofre muito, é claramente a doença que mais se sofre, e por outro lado mais mal respeitada porque ninguém acredita, mas para além de sofrer há sempre o risco de suicídio porque o sofrimento é tão grande que parece que a única coisa que alivia é desaparecer.
SR – Há sempre a sensação de que à volta as pessoas não os compreendem!
MC – Primeiro há a sensação insuportável de que não vai aguentar mais um dia, muito menos uma noite e ainda menos uma hora. Depois a incompreensão da família. Este problema afecta mais as mulheres, mais um estigma para a mulher. Em casa normalmente o que os maridos lhe dizem é: se tivesses tanto para fazer como eu, não te queixavas disso, os filhos chateiam-se em ver a mãe assim e a senhora fica numa doença aflitiva, bastante dolorosa, que lhe atinge mais do que a tristeza , atinge-lhe a capacidade de fazer coisas, está como se tivesse «paralisada» das capacidades de decisão, vontade e o meio a não perceber nem a ajudar, inclusivamente os próprios médicos que nem baixa dão, porque acham que aquilo com um bocadinho de passeio até vai lá. Um dos principais pontos da doença da depressão é atingir a vontade. Uma doença do estômago tem de atingir a digestão, ora uma doença cerebral tem de atingir o que o cérebro faz, uma das coisas que é mais atingido, é precisamente os mecanismos de vontade, decisão e de interesse. Pôr uma pessoa destas no inicio do tratamento ou mesmo antes do tratamento a passear é a mesma coisa que a porem a saltar em cima de picos.
SR – Então, de que forma é que a família deve lidar com a doença?
MC – Primeiro de tudo, respeitar a doença, depois ajudar o doente a tratar-se, porque nem sempre os doentes se consideram doentes, por questões de vergonha.
SR – Era aí que eu queria chegar. Como é que se faz para que as pessoas que nos rodeiam, amigos e colegas de trabalho se apercebam de que têm de fazer isso?
MC – As pessoas aderem mais facilmente a deixarem ajudar-se se sentirem que as pessoas que estão ao lado fazem duas coisas; uma é ouvir, e um depressivo não é agradável de ouvir, uma vez que são agressivos, a chamada agressividade passiva, é preciso força de vontade. A segunda coisa, a pessoa tem que se sentir sentida, é mais que compreendida, ou seja, se estiver aflita, a pessoa mais do que a compreensão precisa que sintam o que ela está a sentir, isto é fundamental. Só assim começam a ouvir as sugestões dessa pessoa. O terceiro passo é destruir de vez a ideia de que isto é uma doença da alma, da moral, senão leva-nos a dizer que isto afinal não é uma doença, mas sim uma fraqueza.
SR – Definitivamente, trata-se de uma doença, e grave?
MC – É uma doença grave e uma doença psicossomática, tanto apanha o psíquico como apanha o soma. Por exemplo, ao contrário do que a gente imagina o corpo todo está a reagir, um psiquiatra faz um diagnóstico de depressão olhando para a cara da pessoa, porquê? Porque fica sem expressão no olhar, muitas mais curvas na cara, as pálpebras ficam baixas, a própria cor da pele fica esquisita, e só quando a tristeza encarna é que começa a depressão e aí quando vai para o corpo é que começa então a perda do apetite, do desejo sexual, perda do sono, perda de vontade de fazer coisas, perda da força muscular, perda de interesse, às vezes fica-se com prisão de ventre, todo o organismo muda. Nas depressões mais graves até dizem coisas que as pessoas não entendem, já tive doentes que me diziam que sentiam as pernas a chorar, parece uma loucura. É uma doença psicossomática que tanto atinge a parte mental como a física e como tal tem de ser tratada como outra doença qualquer.
SR – As pessoas à volta é que fazem com que se sinta vergonha de ter esta doença?
MC – É verdade. Eu sou psiquiatra há quase 50 anos e graças a Deus assisti a uma grande abertura. Há 30 anos atrás quem tinha depressões tinha de andar aí bem caladinho senão estava «lixado», mas hoje ainda não é assim com essa facilidade, olhe que hoje uma pessoa deprimida é melhor calar, eu ainda aconselho os meus doentes a fazerem isso, porque eu nunca sei se o patrão os vai tratar da mesma maneira, ou se os estudos vão continuar da mesma forma.
SR – Parece-me que essas pessoas são muito fortes!
MC – Claro que sim, não tenha dúvidas. As doenças psicológicas como em qualquer doença, significa fragilidade numa coisa, mas em todo resto são muito fortes.
SR – São capazes de aguentar muitas coisas.
MC – Sim, aguentam isso e têm atrás de si uma série de sofrimentos que muitos outros ditos normais, ai deles que tivessem passado por isso, mas isso ninguém conta só vêm o resultado final.
SR – Mas também não se deve falar muito do facto deles estarem doentes?
MC – Isso não, é como outra coisa qualquer que se está à espera que passe. A última coisa a fazer, aí sim, ajudá-la a dar os passos de sair, passear e essas coisas, mas só quando ela já sentir uma pequenina vontade para sair.
SR – É perfeitamente normal no inicio do tratamento sentirem muita sonolência e necessidade de descansar?
MC – Muita, sobretudo até porque a maioria dos remédios dá sono, felizmente agora até temos remédios que não dão tanto sono. Antigamente, nós só tínhamos para tratar isto, as chamadas curas de sono, que era pôr as pessoas a dormir. Hoje não pomos as pessoas a dormir mas damos remédios que dão algum sono. Há a necessidade de sedar um bocado ruminações de pensamentos que são sempre muito negros, muito negativos, para ver se as pessoas mudam de ideias e não estão sempre a pensar nessas coisas.
SR – No sentido de pôr as pessoas a dormir, hoje em dia já não há internamentos com tanta frequência?
MC – Não, são muito menos, porque há uns 40 anos para cá começaram a surgir os antidepressivos que têm facilitado o ambulatório nestes casos. Quase não precisamos internar os doentes, podem ser tratados em casa com a ajuda dos antidepressivos. Só internamos em caso de depressões em que há o risco de suicídio e mesmo assim se temos a certeza que em casa há um controle apertado também não internamos estes doentes. Outra maneira que há para internar é quando os remédios não dão efeito. Apesar dos bons remédios que existem sabemos de 20 a 30 por cento de casos onde os medicamentos não fazem efeito. Isto quer dizer que nestes casos passamos para tratamentos mais pesados, ou mais clássicos, passamos a dar os remédios em soro. Nos casos ainda mais graves, que são casos de depressão enorme, onde a ideia de suicídio é gravíssima, nós ainda recorremos aos choques eléctricos. Para lhe dar uma ideia, quando eu comecei com psiquiatria, deviam-se dar no meu sector, uns cinco ou seis electrochoques por semana, hoje deve-se fazer um por ano.
SR – O electrochoque dá realmente bons resultados?
MC – Em casos aflitivos, nós às vezes temos casos aflitivos, alguns doentes parece que estão em coma, já nem se mexem, se melhorarem matam-se imediatamente, e em alguns casos damos-lhe um electrochoque e eles melhoram significativamente.
SR – Já lhe aconteceu dar um electrochoque e não acontecer absolutamente nada?
MC – Sim. Há casos em que não dá efeito nenhum, porque sabe que no meio de tudo o que é medicina, há casos em que a medicina não faz nada.
SR – O electrochoque também pode de alguma forma prejudicar o doente?
MC – Repare, o electrochoque tem por trás dele duas coisas gravíssimas. Uma é que antigamente era feito sem anestesia, porque como nos hospitais normais não havia anestesistas, para não correrem riscos os choques eram dados sem anestesia, para o doente talvez não fosse muito grave porque o electrochoque faz perder a memória, por outro lado, provocava um ataque epiléptico, isso também já não se faz porque hoje em dia o indivíduo não sente nada, e há um remédio que tira a força dos músculos, portanto o indivíduo já nem tem ataque epiléptico nenhum. Para quem está de fora não há diferença entre um choque eléctrico e uma anestesia para tirar o apêndice. Tem uma história terrível do passado, não só pela sua forma violenta, mas também por ser usado «a torto e a direito», muitas vezes sem ser preciso e não há dúvida que nós psiquiatras temos que pedir desculpa por isso.
SR – Morre-se de depressão?
MC – Morre, em casos extremos morre, primeiro por suicídio.
SR – Em casos de corpos que estão praticamente a «vegetar», acabam por morrer?
MC - Morrem, mas eram muito mais frequentes quando não havia remédios, a coisa evoluía por ali adiante e não tínhamos nada para fazer.
SR – Então morre-se de sofrimento?
MC – Morre-se, e de amor também. Não por consequência, vai-se morrendo. Como lhe disse ao bocado as depressões também apanham o organismo, o colesterol sobe, as tenções ficam mais frágeis, começa a haver dificuldades de batimentos cardíacos, morre-se por uma causa orgânica. Por exemplo, se separar uma criança da Mãe entre os oito meses e os 18 meses, suponha que a Mãe morreu e a criança foi internada, havia casos em que a criança morria de amor por falta da mãe e os que não morriam ficaram com sequelas.
SR – Os antidepressivos, felizmente descobertos, não servem então como costumam dizer, para «tapar o sol com a peneira»?
MC – É falso, é verdadeiramente falso para as depressões, para outras coisas podia ser. É verdade se for, por exemplo, o stress, a ansiedade, se for no sentido em que uma pessoa precisa de aprender a resolver os seus problemas e se estamos apenas a diminuir o sofrimento que ela tem com calmantes, váliuns, etc. estamos «a tapar o sol com a peneira», primeiro porque não estamos a tratar nada, estamos só a abafar os sintomas que a pessoa tem. Mas a depressão não é isso, a depressão é uma doença que tem de ser tratada e não é verdade que o antidepressivo seja como uma aspirina para baixar a febre, um antidepressivo é contra a depressão. Mesmo quando a depressão pode ter razões de chatices de vida, de luta, não há dúvida que há zonas cerebrais onde há alterações bioquímicas e não há dúvidas que os remédios, é nessas zonas que vão actuar modificando essas alterações bioquímicas.
SR – Ajudam as pessoas a lutar!
MC – Ajudam as pessoas a sair da depressão, porque as pessoas quando estão deprimidas nem forças têm para lutar, e depois de sair da depressão vão então à luta.
SR – No caso da esquizofrenia as coisas complicam-se bastante?
MC – A esquizofrenia é a maior doença que existe na psiquiatria, é o nosso cancro. Aqui graças a Deus que há remédios, porque antes de haver remédios era muito complicado.
SR – Esses remédios são direccionados só para a esquizofrenia?
MC – Só para a esquizofrenia, são os chamados esferotiazinas e agora os antipsicóticos animicos, estes são muito melhor tolerados que as esferotiazinas, são muito caros, felizmente o estado paga-as por inteiro, mas constou-se que este governo e a nossa ministra estavam a tentar fazer os doentes pagar, o que a meu ver isto é muito grave, se há doença que não pode prescindir dos medicamentos é a esquizofrenia, tendo em conta que também são remédios muito caros.
SR – Quais são, mais concretamente os sintomas da esquizofrenia?
MC – É variável, é mais fácil descrever os sintomas quando eles estão no inicio do que quando estão já instalados. É por isso, que nós temos alguma dificuldade, porque quanto mais cedo diagnosticamos, melhor tratamos. Ao principio é difícil de dizer se a pessoa está ou não está em esquizofrenia, mas, o que caracteriza normalmente o doente de esquizofrenia, é serem realmente pessoas muito inteligentes, de qualquer modo, têm um temperamento um pouco reservado e introvertido, não são pessoas muito sociáveis, são mais dados à leitura e à vida interior do que à festa e à vida exterior. Têm dificuldade de enfrentar o exterior e de uma forma abrupta, começam a ter uns comportamentos muito esquisitos. Por exemplo, de repente passam uma noite sem vir a casa mas, quando nos aparecem, estão normais. A partir daqui começam a ter algum desleixo pessoal e uma diminuição franca do rendimento escolar, quando ainda estão a estudar, alguns acabam mesmo por «chumbar», vestem de outra forma, a barba por fazer, etc. Quando a doença começa a piorar as pessoas começam a entrar num mundo de desconfiança – alguma coisa não está bem, algo está para acontecer, depois já os outros sabem menos ele, a determinada altura descobrem o que é – é o delírio. Então é assim – tenho uma missão para cumprir, ou tenho um segredo e toda a gente o quer descobrir – agora é que é fácil de diagnosticar, com o delírio ouve-se quase sempre vozes, vozes complicadas.
SR – Vozes claras como as nossas?
MC – Claríssimas, com tal clareza que é impossível explicar-lhes que não são vozes, eles ouvem-nas por trás da parede, é o vizinho do lado, então inventam um aparelho e colam à parede para ouvir, e ouvem dizer: Tu és um «maricas», não és homem nem és nada, vais matar não sei quem. Mas há coisas ainda mais bizarras que é ouvirem o pensamento, pensam-no e ouvem-no a seguir e às vezes até ouvem antes de pensar.
SR – Tem sido muito difícil encontrar o tratamento que mais se adequa?
MC – Claro que sim! Depois disto vem o máximo que é; qualquer pensamento, qualquer acto ou sentimento, não é ele , é alguém que o faz por ele, é então a perda total de autonomia. Em 1956, felizmente, foi inventado o primeiro remédio para tratar isto. Neste momento se apanharmos um doente no inicio da doença ele pode ficar praticamente novo, por exemplo, não estuda mais, mas fica bem. Outras pessoas ficam também bem, mas em relação à capacidade de sentir e tomar decisões, ficam vazios, os chamados sintomas negativos. Estes sintomas negativos são aqueles que os antipsicóticos anímicos mais actuam, o que quer dizer que se até aqui tínhamos remédios para os positivos todos «esquisitos» e não tínhamos nada para os negativos, hoje começamos a ter, acontece que são muito caros e ainda por cima são um monopólio porque a empresa que descobre, é como descobrir o petróleo, ainda não houve outra que descobrisse uma ao lado. Nós tínhamos um grande problema porque o estado não comparticipava estes medicamentos, imagine agora que um doente destes normalmente não ganha, as famílias não são todas ricas, apanha todos os estratos e há um remédio que custa 40/50 contos por mês. Até que, já neste governo, mas a anterior ministra da saúde, fez uma lei a tornar gratuito qualquer medicamento para doenças crónicas. Há pouco tempo, esta nova ministra pensou em acabar com esta lei, deixando de comparticipar a 100, passando para 40 por cento, havendo um certo levantamento dos psiquiatras e até mesmo das famílias dos doentes. Eu compreendo que é uma questão difícil para a ministra porque estes remédios são caríssimos e como sabe a saúde está cada vez mais cara, mas provavelmente há outras doenças onde se poderia poupar, pondo então esses remédios mais caros. É o caso por exemplo dos antibióticos, podia-se dizer que em determinadas doenças os antibióticos fossem mais caros, porque de um modo geral uma pessoa está doente oito dias, bem podia pagar um antibiótico por inteiro, em solidariedade com doentes crónicos que têm de tomar medicamentos toda a vida. Mas o despacho ainda não foi posto a funcionar pela ministra, mas poderá vir a pô-lo e será um problema.
SR – Neste sentido e com estes medicamentos, cada vez há menos doentes a necessitar de internamento?
MC – É e nesse aspecto, estes doentes é que nos enchiam os chamados hospícios, ou hospitais psiquiátricos, hoje em dia estamos a fechá-los à custa dos remédios mais nada. Estamos a fechar o Conde de Ferreira, estamos a fechar coisas que nem viam nem nunca queira ver, que eram os velhos hospícios no meio do monte, ali para os lados de Amarante, em sítios um bocado degradados, nem vale a pena falar disso.
SR – E não tinham condições?
MC – Nenhumas. Havia alguns que no Inverno os doentes não saíam da cama porque a água estava muito alta.
SR – Isso ainda ia agravar o estado deles?
MC – É evidente. Estamos a fecha-los mas olhe que é à custa dos remédios, não é à custa de mais nada, em termos psicológicos quase que não há tratamento para os esquizofrénicos, há remédios.
SR – Nem um internamento?
MC – O internamento é para os macaquietos para eles não partirem tudo e não se matarem. Mas também estamos a dar altas, a mandar as pessoas para casa.
SR – Porque os hospitais não reúnem condições?
MC – Não é por isso, é porque já não são precisos, graças a Deus! Nós só precisamos dos hospitais para as coisas agudas, para a fase inicial, enquanto as pessoas estão muito mal, depois começa-se a tratar, as pessoas ficam mais ou menos bem e podem ir para a vida.
SR – Acha que alguns psiquiatras receitam antidepressivos sem serem estritamente necessários, por questões de contractos com algumas multinacionais?
MC – Olhe, vou-lhe falar com toda a sinceridade, há gente corrupta em todo lado, como sabe, não creio que na nossa classe seja mais que na outra, com sinceridade, e as pessoas que eu conheço têm algum cuidado em não pisar o risco sobretudo ao nível da imoralidade e sobretudo se falarmos a nível da psiquiatria eu acho que não há esse risco.
SR – Até porque é muito perigoso para os doentes que isso aconteça!
MC – É perigoso e sobretudo na psiquiatria não me parece que haja esse risco. O que se pode pôr a discussão, e muitas vezes se põe é noutra coisa, é onde é que termina a ajuda ou não ajuda dos laboratórios da nossa própria formação. Como sabe nós psiquiatras só nos podemos formar de duas maneiras, ou lendo livros ou indo a congressos e não há pagamento dessas coisas para nós nem o desconto disso nos nossos impostos, se eu comprar um livro de psiquiatria posso descontar de facto, mas se eu for a um congresso não posso, mesmo que possa descontar alguma coisa, tem um limite e os limites são ridículos, são 100/200 contos. As empresas e os laboratórios tendem a fazer a sua propaganda pagando-nos, sobretudo àqueles mais conhecidos, as suas viagens aos congressos. É aqui que se levanta a questão que é: Há pessoas que aproveitam o congresso para aprenderem mesmo e há pessoas que aproveitam o congresso para ir passear, é aqui que se pode dizer que às vezes alguém pisa o risco, não é por receitar mais ou menos, pelo menos quanto eu sei não é, pelo menos na psiquiatria não é, só que algumas pessoas e poucas, pisam o risco. Havia também um risco antigo que agora acabou com a nova lei que era muitos aproveitarem para levar a mulher, isto é, eles iam de facto estudar mas as mulheres iam passear, mas às vezes arranjam-se uns processos para disfarçar um bocadinho isso. Se me perguntar, há corrupção aberta, eu acho que não há, há depois o jogo do limite entre o que é aceitável e o que não é aceitável. Por exemplo o que se passou na Figueira da Foz, até para nós foi um espanto, nem acreditávamos que fosse possível, é marketing demasiado e deve ser altamente punido, mas não é vulgar.
SR – Quando lidamos com pessoas da minha idade ou da sua, é mais fácil tratar um doente, porque há sempre a família que ajuda, mas quando se trata de idosos reformados, é mais complicado, o estado não apoia estes casos?
MC – Não é não apoiar, o estado faz aos idosos o mesmo que nos faz a nós, um bocado pior, o problema é que os idosos ganham muito pouco.
SR – Mas os idosos depois também têm outros problemas como neurologia...
MC – Muitas coisas, há neurologia, há as atrozes, os músculos e é por isso que muitos doentes gastam a reforma por inteiro na farmácia. Eles vão comprar os remédios para estas coisas todas e o estado comparticipa mais até do que na nossa idade, mas o problema é que eles ganham muito menos, o que é agravado pela utilização de remédios que não são precisos para nada. Também há remédios que não fazem nem bem nem mal, como os remédios para abrir a memória e não há remédios para abrir a memória e também é dinheiro que gastam. Não há ninguém que chegue à reforma sem ter uma doença crónica e que gaste dinheiro.
SR – E aqueles doentes que não têm ninguém para cuidar deles, existe algum centro onde eles possam estar?
MC – Há muito poucos, mas comparado com uns anos atrás há muitos, mas continuam a ser poucos comparado com o numero de pessoas que precisam e quem tem feito mais esforço nisso, até têm sido as autarquias, sobretudo as pequenas tipo Juntas e Juntas rurais, onde o idoso pode ir o dia todo e durante o dia não só se distraem, convivem e outras coisas como o apoio médico e psicológico.
SR – E pagam por lá estar ?
MC – Há sítios, que eu até conheço alguns, que são extremamente louváveis, porque as pessoas não pagam para ir para lá, sítios muito nobres de caridade social, inclusive alguns até vão a casa dar banho aos doentes, só que não dão onde dormir que é a parte mais complicada, mas comparado com o que o País precisa é muito pouco. Há de facto um esforço de estado em sermos um pais do primeiro mundo e ir regularizando isso, só que nós partimos muito atrasados.
SR – Não se nota, por parte do governo, o espirito de estar a investir num «saco roto», do estilo, eles vão morrer, não vala a pena gastar dinheiro?
MC – Não, por parte do estado, das autarquias e algumas instituições de solidariedade nacional, não se nota, noutros sítios nota-se, quase do tipo, é bom ali ter morrido um, quero pôr lá outro.
SR – Em casos de assassinos e marginais, quando fica provado que têm problemas emocionais, são levados para onde?
MC – Nestes casos quando se consegue provar que o indivíduo, quando cometeu o crime, não estava consciente do que estava a fazer, como por exemplo, esquizofrénicos e atrasados mentais, se for provado em tribunal, o indivíduo é considerado inimputável, isto quer dizer por lei que a pessoa não é condenável, mas se o indivíduo for considerado perigoso, o juiz condena-o a um internamento, se não for considerado perigoso é posto em liberdade.
SR – Há um sitio especifico para onde vão estes indivíduos?
MC – Há, todos os hospitais psiquiátricos têm uma zona de inimputáveis.
SR – Mas não há um local tipo cadeia para eles?
MC – Há um sitio tipo cadeia, mas é diferente. Por exemplo, um indivíduo considerado imputável, se durante o internamento tiver problemas psiquiátricos, há um hospital psiquiátrico na cadeia, como por exemplo, em Santa Cruz do Bispo, que tem uma colónia penal para doentes mentais e só doentes mentais. Em todo o País há dentro dos hospitais, mas numa enfermaria diferente, a chamada zona dos inimputáveis.
SR – Dentro deste espaço, funcionam bem uns com os outros ou costuma haver alguma agressividade?
MC – Parece haver uma maior agressividade entre eles mas controlável, de qualquer modo estes doentes não estão condenados à prisão perpétua, a qualquer momento podem sair.
SR – Para terminar, gostava de saber se ainda há doentes voluntários, que vão ao hospital fazer terapia e vêm embora quando querem?
MC – Há, isso é que seria o ideal, mas só acontecerá a partir do momento em que se desistir, de dramatizar a doença, como noutra doença qualquer, a pessoa sente-se doente e procura ajuda, quando estiver melhor tem alta e vai para casa. Já há muitos casos assim e é para lá que caminhamos. Defendo isto, é preciso acabar com o estigma da doença mental. Este ano foi declarado o ano da doença mental, devíamos aproveitar este facto para encarar esta doença com a mesma naturalidade que encaramos tantas outras.



REPORTAGEM

"VOANDO SOBRE UM NINHO DE CUCOS"

Muitas são as doenças psiquiátricas, e poucas são as instituições que dão guarida a pessoas com diferenças. Todos sabemos que elas existem mas enquanto são problemas dos outros vive-se bem, as dificuldades aumentam quando é connosco, e o que nos oferecem são instituições centenárias, com condições pouco distintas onde um ser humano é colocado à espera de melhoras quase nunca vistas.
O Hospital Conde de Ferreira é uma instituição centenária, que dá abrigo a 480 pessoas «diferentes», para uma sociedade que não está preparada para algumas diferenças que podem interferir na harmonia social. Este hospital já foi um dos maiores da cidade do Porto e mesmo o único preparado para estas doenças. Já estiveram lá internadas mais de 1000 pessoas. Com a abertura do Magalhães Lemos, o Hospital foi ficando esquecido e por falta de condições esteve para ser fechado. Lá dentro chamam-lhe uma decisão política, mas a realidade é que muitos iam ficar sem sítio para viver, foi então que a Santa Casa da Misericórdia resolveu voltar a tomar conta de um hospital que hoje se está a transformar em asilo.
A bonita e harmoniosa entrada do hospital é conservada até hoje com as mesmas características que a marcavam. A entrada não está interdita a ninguém, qualquer pessoa pode entrar e visitar aqueles corredores que nos mostram o sofrimento de milhares de pessoas que por ali tiveram de passar. Quem se concentrar bem, ainda consegue ouvir alguns sons de sofrimento, choros e gritos de alguém que lá entrou um dia e nunca mais conseguiu sair. Para trás ficaram as famílias e os amigos que lá os deixaram porque não sabiam como tratar aquela doença que tanto assusta.
Pelos corredores passeiam uns e outros que têm a liberdade de sair, mas fixam-nos nos olhos como se não fossemos do mesmo mundo e invadíssemos o seu espaço. As janelas altas e envidraçadas dão para um jardim que ninguém utiliza e as portas são trancadas a sete chaves. Pelas paredes vão aparecendo imagens de alguém que há muito foi esquecido, mas que ali pertenceu.
Quando se contornam os corredores encontra-se a secção de consultas externas, esquecida ao fundo daquela imensidão. Nota-se a simpatia das enfermeiras que conversam connosco, mas receiam falar demais, e isso, assusta-as, quando comentam: «Não estamos dentro de nenhum assunto, achava melhor falarem com o médico de serviço». Enquanto esperamos ser atendidos pelo médico, dois ou três doentes ali sentados olham-nos com a alegria de ver caras novas que possivelmente frequentam os mesmos sítios que eles.
Mais estranho se torna quando o médico de serviço se sente constrangido em prestar declarações. Começa por proibir gravações e máquinas fotográficas e tentou controlar tudo o que era escrito. Depois de algumas palavras entre os dentes, lá deixou escapar que, «dois terços dos doentes são crónicos, não há hipótese de cura e provavelmente não voltam a sair do hospital. A maioria sofre de esquizofrenia residual, doença muito complicada. Alguns são pessoas com 50/60 anos que não têm família e por isso, foram ficando permanentemente. São pessoas com poucos recursos económicos, normalmente de classes baixas que não têm possibilidades para pagar lares para idosos, e nós não os vamos pôr na rua, como deve calcular. Estão aqui internados alguns inimputáveis, mas tanto num caso como no outro não há violência física, porque estão todos devidamente medicados». Em relação aos tratamentos utilizados dentro do hospital foram algumas as alterações sofridas com a evolução da ciência, refere o médico que, «antigamente nos anos 60/70 eram utilizadas as curas de sono, tratamento passivo à base de amitriplinimico, que não tinha qualquer valor científico no tratamento das depressões, ou seja, enquanto dormiam amenizavam o sofrimento, mas quando acordavam o problema continuava lá. A hipnose foi um tratamento que nunca utilizamos, já os electrochoques foram muito utilizados e continuamos a utilizar mas com menos frequência, por exemplo, em casos de esquizofrenia residual».
Com esta mini entrevista quase que arrancada, a curiosidade vai aumentando. Pelos corredores, numa das portas trancadas, dizia: Enfermaria Júlio de Matos. Ao bater à porta, a enfermeira chefe recebe-nos com muita simpatia mas também algum receio. Entrando na enfermaria, tudo muda à nossa volta. São dezenas de pessoas que espreitam para ver quem chega. Nota-se que aguardam ansiosas por alguém que nunca aparece para lhes dar uma palavra de conforto. A tristeza nos olhares é notória, acompanhada de algum conformismo de quem está assim há tantos anos, que já nem sabem ser diferentes, ou «iguais». O cheiro é característico, misturando um hospital com um asilo, talvez seja fácil decifrar os odores existentes. São coisas que estão fechadas há muitos anos, frustrações, emoções, sensações, coisas que nem eles sabem bem onde as guardaram.
Naquele instante de alguma confusão, eis que se aproxima alguém muito simpático. O Sr. Mário, dirige-se a nós e começa por dizer que, «há coisas que se deviam saber, sou maníaco-depressivo e tenho que tomar medicamentos toda a vida. Há alturas da minha vida que estou deprimido e outras em que fico maníaco. Eu era animador cultural, tinha um bom emprego, mas bebia bastante álcool. Um dia separei-me da minha mulher e tentei suicidar-me. Melhorei mas nunca mais vi a minha filha. Ela estuda na escola superior de educação, mas tem vergonha de mim, nem sequer me quer ver. Eu queria que soubessem que não sou maluco, simplesmente tenho uma doença que me obriga a tomar medicamentos toda a vida. Tenho tendências suicidas e mesmo agora com tratamentos, várias vezes me tentei suicidar com os medicamentos, mas fazem-me lavagens ao estômago e fico bem. A última vês misturei álcool com medicamentos e atirei-me da Torre dos Clérigos. As pessoas precisam de saber destas coisas, porque nós não somos malucos, às vezes não temos forças para encarar este mundo que tanto nos magoa».
Sr. Mário tinha encontrado alguém com quem desabafar, poucas coisas o prendem à vida, só a saudade daquilo que nunca teve lhe dá forças para lutar e reconstruir tudo de novo. Foi nesse momento que nos mostrou alguns dos espaços de algum lazer existentes na enfermaria. Começou pela sala de convívio, que se torna assustadora pela solidão lá existente. Ninguém convivia, cada um no seu canto, pensam apáticos nos seus problemas, têm aprendido a viver sozinhos à muito tempo. A sala tem muitos bancos de madeira, algumas cadeiras, e uma televisão quase velha no canto da sala. Às poucas pessoas que lá estão, tanto lhes faz se a televisão é nova ou velha, porque quando olham para o ecrã, vêem tudo menos a programação diária. Ao fundo da sala há um jardim, lá estavam sentados uma meia dúzia de doentes, que não o podem apreciar, pois este está a monte há muitos anos. Aproveitam então para contar a vida deles desde que nasceram, e algumas tinham já os seus 70 anos. Outros, como uma jovem de vinte e poucos anos, olhavam o infinito, aquilo que lhe fugiu e que ela tenta encontrar nos seus pensamentos. De tudo o que perdeu são as lembranças que lhe restam.
Ali podemos encontrar de tudo, portadores do vírus HIV, problemas de carência levados ao extremo, ao ponto de andarem todos nus, pessoas que não falam, só ouvem rádio, outros a vida pregou-lhes partidas, como é o caso da D. Maria, que o senhorio lhe queria tirar a casa sem ela ter para onde ir, deixando-a num estado tal, que a senhora já via fantasmas em casa que a mandavam sair de lá. Enquanto ouvia-mos estas histórias tão deprimentes, eis que entra em fraldas mais um jovem. Vinha cedado, consigo os enfermeiros arrastavam soro.
Ao Sr. Mário já se tinha juntado a D. Maria que também nos mostrou o resto da enfermaria. A sala de jantar é asseada, normalmente arrumada por duas doentes que se prestam a essa tarefa. Ao fundo existe um móvel de cordas para puxar as coisas da parte de baixo da cozinha para a sala, e onde todos ajudam, nada custa.
As casas de banho são divididas por sexos, mas a idade nunca perdoa, são quatro paredes já muito gastas, onde existe uma sanita e uma aparadora, mas ninguém ainda se queixou das condições de higiene daquela enfermaria, tudo era conforme os gostos deles. Outras das grandes portas que estão trancadas são as dos quartos. Muito asseados, só lá se podia estar de noite. São divididos, homens a um lado e mulheres a outro. Cada quarto tem duas ou três camas, é um silêncio assustador, e ao fundo mais uma das janelas envidraçadas, mas estas têm grades, não há forma de fugir. Dali vêm a vida daqueles a quem chamam normais. Estes estão fechados, têm a liberdade condicionada por uns quadrados que os impedem de amanhecer com os sonhos e objectivos de vida que um ser humano deve ter. Estes são diferentes, estes sentem a vida de forma mais intensa, estes são sensíveis e são abandonados por isso. Estes doentes, ao verem os chamados normais despedirem-se e abandonarem a enfermaria, deixam cair lágrimas, lágrimas de quem já está habituado a que lhes virem as costas...


EDITORIAL

A SABEDORIA DO LOUCO VÊ-SE NA LOUCURA DO SÁBIO


O tema doenças psiquiátricas não foi escolhido por acaso. Se perdermos algum tempo a olhar à nossa volta, verificamos que a maioria das pessoas sofrem ou já sofreram de muitos dos sintomas tratados por psiquiatras. Mas o mais preocupante é o facto de todos admitirem que se trata de uma doença, mas continuarem a estigmatiza-la de forma a que, quem a realmente tem, a esconda para não se sentir observado por uma sociedade, onde já não se pode ser doente, para não ser posto de parte. Não acontece só nos empregos, acontece com amigos e colegas que lhes colocam rótulos de doentes mentais, atrasados, ou então, que argumentam que têm é preguiça de trabalhar e inventam depressões para não fazerem nada.
Também é de compreender que uma entidade patronal não queira dar trabalho a alguém doente, que a qualquer momento pode ficar em casa deprimido sem saber bem porquê, e nestes casos a empresa é prejudicada porque já não consegue produzir o que apriori estava estipulado. Mas o próprio empregado tendo baixa - que normalmente, nestes casos, os médicos não dão - acaba por ganhar muito menos e ficar prejudicado. Levanta-se a questão: Quantos empregados uma empresa tem de baixa sem terem doenças psiquiátricas, ou mesmo sem doença nenhuma? Bastantes, ainda por cima sem estarem doentes. Devia-se perguntar quem dá realmente prejuízo, os que a doença obriga a ficar de baixa, ou os que não têm nada? Pois é...
Estas pessoas pagam impostos como todos nós, têm os mesmos direitos, não têm que esconder um pequeno problema que não incomoda ninguém, nem é contagioso. O estado não costuma reparar nesta alta percentagem da sociedade que não pode viver sem acompanhamento médico e fármaco. Os medicamentos são caríssimos e em muitos casos imprescindíveis.
Estamos perante um problema que a todos diz respeito. Uma sociedade de stress pode causar doenças do foro sensorial e qualquer um tem de ser consciencioso e pensar que pode tocar a todos, de uma forma ou de outra. Pode ser o meu filho, mas também pode ser o meu Pai e não é pondo-os de parte na sociedade que vamos ser todos muito mais felizes e contentes. Os seres humanos têm falhas, todos falham de várias maneiras, não é escondendo-as que as resolvemos, mas sim sabendo viver com elas e tentar solucioná-las de forma a que todos possámos ter o nosso cantinho de felicidade.
Muito importante seria para quem consegue admitir as suas fraquezas, que não tivesse como recompensa ser despedido ou posto de parte. Só querem que os deixem viver a vida deles e que ninguém se dê ao trabalho de os analisar, para ver se são normais ou não. Afinal quem é normal? Alguém consegue responder? Pois é, não pode, porque se olharmos à nossa volta, devíamos conseguir ver que apesar de sermos todos diferentes, no fundo até somos todos iguais. Cada um tem o direito de extravasar a loucura à sua maneira desde que não interfira na loucura de ninguém.


CRÓNICA

VIVER TODOS OS DIAS ASSIM NÃO CANSA

Era uma vez, uma aldeia muito bonita no interior do Alentejo que se chamava Santo Antoninho dos Desprotegidos. Reza a lenda que o menino António, nascido e criado nas redondezas, tinha sido uma criança comum, até ao dia em que sua mãe se mata sem ninguém saber porquê. O seu pai já com uma certa idade nada sabia dizer ao filho, que teve de se fazer à vida para olhar pelo pai e ter dinheiro para comer. Sempre se achara muito parecido com a mãe e percebia bem quando ela ficava doente, era fraca para trabalhar no campo e ainda tinha de olhar pelo marido que às vezes gastava muito dinheiro em vinho e tabaco, sem falar nas vezes que lhes batia.
Um dia, depois da escola, Toninho – como era chamado - encontra a mãe deitada no chão com os pulsos cortados. Foi um dia que nunca mais esqueceu. A morte da mãe, a doença do pai, desgastaram a criança. Na Vila chamaram-lhe demónio. Diziam que ela estava possuída antes de morrer e todos começaram a rejeitá-los por isso.
O menino António começou a sofrer muito, ainda por cima sózinho no mundo, não encontrava forças nem apoio para caminhar na direcção certa. Começou por se sentir esquisito, não tinha vontade de fazer nada, tudo o cansava e chateava. Não se arranjava, deixou de fazer a barba e poucas vezes tomava banho. O seu mundo era realmente um mundo diferente, todos os seus pensamentos se centravam no mesmo. Não encontrava razão para viver e a dor era tão forte que não aguentava mais. No emprego, despediram-no e insultaram-no de bandalho, não lhe restava muitas alternativas.
Um dia, como tantos outros, ninguém mais lhe pôs a vista em cima. António estava perdido, queria perceber porque morreu a mãe e porque ele estava exactamente com as mesmas ideias suícidas que a mãe teve. Mas António não se ia matar, tinha jurado a si mesmo perceber o porquê da mãe o ter abandonado. Ele sentia a existência de um elo de ligação em toda essa história, mas a confusão mental era tanta que não conseguia articular nenhum pensamento.
Meses mais tarde e depois de ter andado completamente desesperado de sofrimento, começou a desfalecer e a perder algumas das suas faculdades mentais. Quando alguém lhe dirigia a palavra, não dizia coisa com coisa. Um dia, numa terra mais desenvolvida das redondezas, levaram-no para uma casa de apoio aos sem abrigo. Foi-lhe prestado auxilio médico, mas o problema dele, não era não ter abrigo, mas sim um esgotamento mental.
Nessa casa, os médicos perceberam que António tinha grandes distúrbios emocionais, mas ali não havia nenhum psiquiatra que o pudesse tratar. Ali foi ficando a conviver com mais alguns que não percebendo de doenças mentais o acabaram por pôr de parte, sem o ajudarem em nada.
Todos os dias António tentava conversar e procurar alguém que sentisse o mesmo que ele, necessitava de se encontrar e perceber que também pertence a este mundo. Mas o que ele procurava nunca foi encontrado, pelo contrário, riam-se dele pelas costas e diziam que era um anormal, era constantemente subestimado. Um dia, tentou pôr fim a toda aquela «loucura» e tomou um frasco de comprimidos. Foi levado para o hospital pelos continos do centro e com uma lavagem ao estômago ficou um mês em coma. Ao fim de um mês começou a reagir e foi logo encaminhado para os serviços de psiquiatria do hospital, onde com a ajuda de medicamentos próprios, começou a ter algum interesse por uma vida que tanto o tinha feito sofrer.
Na enfermaria do hospital, passava os dias em contacto com pessoas que se preocupavam e interessavam pelas mesmas coisas, além de se identificar com eles parecia-lhe que, de alguma forma, o compreendiam e sentiam o mesmo que ele. O interesse pela vida crescia ao mesmo tempo que crescia o interesse pelo que a mãe tinha sentido antes de morrer. Enquanto esteve internado, aproveitou para ler sobre doenças psiquiátricas e começou a perceber muito bem o que até ali era uma incógnita. António era uma pessoa depressiva e periodicamente era afectado pela depressão, associada ou não a alguma perturbação emocional. Esta doença era hereditária e estava resolvido o enigma do suicídio da mãe. Tinha-se suicidado porque não sabia viver num mundo onde ninguém a compreendia e ainda era maltratada por isso.
Assim que teve alta, devidamente medicado, António regressou à sua Terra Natal, que estava um pouco mais desenvolvida, mas a sua geração tinha emigrado. Na sua aldeia lá estava uma velha casa abandonada, a casa onde um dia sua mãe se suicidara e mais tarde o pai acabara por morrer. Depois de alguns anos de trabalho, conseguiu reconstruir a casa de forma a albergar todos aqueles que a sociedade não compreendesse por terem distúrbios emocionais. Aquela casa transformou-se num lugar lindo, trabalhavam no campo e quem conseguisse arranjava emprego na vila, podiam sair sempre que quisessem e tivessem vontade. À volta da casa existiam jardins lindos construídos por alguns dos residentes e a harmonia reinava naquele sítio.
Os habitantes da vila sentiram-se muito orgulhosos por aquela obra ser feita por alguém da terra e já nem se lembravam que um dia o tinham maltratado, afinal assim sempre tinham mais habitantes lá perto e já não importava se eram diferentes, alguns vizinhos até ajudavam monetariamente. Perceberam enfim, que são pessoas que ali estão e que também sabem contribuir para a sociedade.
Com o passar dos anos o Sr. Antoninho - como ainda lhe chamavam – faleceu, era muito idoso e a idade não perdoa. Os residentes continuaram a obra por ele iniciada, considerando-o um Santo. Foi a partir daí que lhe puseram o nome de Santo Antoninho dos Desprotegidos, o que acabou por dar nome à aldeia.
Hoje em dia, depois de sofrer algumas alterações, a casa continua a ser residida por pessoas «idênticas», mas quem a subsidia é a Autarquia local, que ao ver alguma mediatização resolveu finalmente ajudar, com a condição de não alterar nada ao nível do funcionamento interno, colocou um psiquiatra a viver com eles, para melhor administração de medicamentos que hoje são mais e melhores. Esta casa, acima de tudo, devia fazer-nos pensar mais em quem nos rodeia e não só no nosso, pouco garantido e efectivo, bem estar.


ARTIGO DE FUNDO

SIMPLESMENTE SÓS !

Muito se diz e escreve sobre os problemas psicológicos que hoje em dia estão tanto na moda. São consultas psiquiátricas para cá, antidepressivos para lá, até chegarmos ao ponto de confundir onde acaba a moda e começa a doença.
São muitas as «mamãs» que levam os filhos ao psicólogo «por dá cá aquela palha». Ou vão fazer testes, ou porque não brincam com o cão que foi tão caro, enfim, vão ao psicólogo como quem vai ao médico de família com uma amigdalite. É claro que quem ganha com tudo isto são os psicólogos que cobram quantias exorbitantes por consultas cada vez menos interessantes. Por exemplo, não imagino um psicólogo a dizer: - O seu filho não tem nenhum problema psicológico, guarde o dinheiro e vá para casa com ele, olhe que há muita gente que precisava de vir ao médico e não vem, porque precisa de dar de comer aos filhos para não ficarem com mais problemas.
Claro que ninguém vai dizer isto, por mais que o pense. Mas a realidade é esta. As crianças são o futuro do país e se não olharmos por elas, depois acusam-nas de rascas e pouco cultas. É claro que também podem esperar por uma consulta no hospital, mas se tiverem sorte arriscam-se a ir para a secção de pediatria com idade de ir para a tropa.
Os nossos jovens são filhos de uma liberdade arrancada a ferros e fogo, mas se são livres por um lado, sofrem pelo outro, com estilhaços de uma guerra que não era deles e onde estiveram os pais a dar o corpo e tudo de bom que aos 20 anos ainda se guarda. Estilhaços de uma luta das mulheres que a toda a força mostraram os seus valores e arrecadaram os direitos que lhes eram assistidos. Estes jovens nasceram na transição de uma época, onde tudo era camuflado e estão presentes num mundo em que tudo lhes é permitido, o que se torna muito confuso na cabeça deles. Estes jovens não têm onde se apoiarem, os pais lutaram pelo que têm e é-lhes exigido que continuem. Mas ainda estão confusos, são os primeiros completamente livres do País, não se baseiam em ninguém, são eles próprios e as confusões mentais que os outros lhes criam.
Jovens como estes, apanharam as frustrações do pai, da mãe e as suas dificuldades. Foi-lhes atirado à cara que tudo o que têm se deve aos pais, mas os pais esquecem-se que transportaram para os filhos tudo o que os assusta. Um jovem além da vida de adolescente, ainda tem o fardo da vida dos pais, que lutaram tanto para eles agora terem as suas vidas. Enfim, há que admitir que é tudo muito confuso nas cabecinhas de alguém, que não viveu na mesma altura. É precisamente aqui que começam as crises existenciais da puberdade, ou seja, quem sou eu, que faço aqui, não pedi para nascer, não vos compreendo, e identifico-me com pouca coisa. É nesta altura que os pais costumam dizer que os filhos estão metidos em drogas, talvez aí então se apercebam que os filhos tinham sentimentos e ninguém teve tempo para os ver, tinham sempre que trabalhar, agora até estão a ganhar melhor e pronto! Mas o filho descobriu que o que a mãe e o pai tinham lutado, já nada tinha haver com o que fazem, preocuparam-se agora em levar os putos ao psiquiatra, porque as colegas também os levam e ficam melhores. O que os filhos sentiram não importou, são novos, sabem lá o que é sofrer. Nós fomos para a guerra, naquela altura não nos mandavam a psiquiatras e eu estou aqui.
Pois está, mas esquece-se que à volta dele estão muitos mais e todos com sentimentos diferentes.