sexta-feira, outubro 12, 2007

Relações de Sucessos como extenções do Jornal a Gazeta de Lisboa

Introdução:


A origem desta tese remonta à minha licenciatura em Comunicação Social entre os anos de 1998 e 2002 e todo o interesse que a comunicação e as diversas formas em que se processa me desperta. Porém, foi durante os seminários da pós-graduação em Culturas Ibéricas na Época Moderna que tomei conhecimento da temática ‘Relações de Sucessos’, mais especificamente com a professora Dr.ª Ana Martinez, que nos alertou, entre outras coisas, para a importância destas publicações para a história do Jornalismo e da Literatura – como preferirem definir uma relação – em Portugal.
O facto de estarem umbilicalmente ligadas a um órgão de comunicação teve muito peso no despertar do meu interesse pela temática, uma vez que se poderiam tirar daqui informações bastantes valiosas para a minha área de actividade, depois de devidamente investigadas.
Foi então que, com o apoio em exclusivo da Dr.ª Ana Martinez e de alguns familiares bem próximos, pus mãos à obra e iniciei a minha investigação sobre as tão faladas relações de sucessos, mais precisamente as relações de sucessos como extensão dos órgãos de comunicação, neste caso especifico a ‘Gazeta de Lisboa’ – o primeiro jornal português.
A Dr.ª Ana Martinez, como orientadora de tese, chamou-me a atenção para um aspecto bastante curioso na Gazeta de Lisboa – o facto de Monterroio Mascarenhas, historiador e escritor, se dedicar intensamente ao jornal ao ponto de ser editor e redactor exclusivo, durante a existência do periódico, inclusivamente responsável pela redacção e selecção das relações de sucessos anexas ao mesmo. Esta curiosidade levou-me até à biblioteca nacional e à consulta de alguma bibliografia para que pudesse ser comprovado este aspecto. E assim foi, não só comprovei a permanência de Monterroio Mascarenhas na ‘Gazeta de Lisboa’ como também aprofundei a minha investigação e percebi então que as Relações de Sucessos não eram nem mais nem menos que extensões da Gazeta, usadas para sobressair, de forma parcial, alguns aspectos que a corte considerasse do seu interesse, ou aspectos meramente lúdicos de entretenimento social. Muitas vezes o facto de serem vendidas separadamente – com forma de suplemento, levava a fidelizar o leitor, obrigando-o a comprar posteriormente o desenrolar da notícia na relação, o que na minha opinião mostra, já na época moderna, alguma preocupação com as questões da rentabilização do jornal bem como da sua promoção e publicidade.
Não foram levados a cabo estudos relativos à forma ou estilo literário nem tão pouco ao seu conteúdo histórico. O estudo permaneceu única e exclusivamente focado na importância das relações de sucessos para os órgãos de comunicação social da época, de que forma se complementavam e distinguiam entre si comparativamente com a actualidade, podendo ser apreciados casos semelhantes de mediatização, 'lobbies', sensacionalismos e parcialidade e, entre outras semelhanças, deparei-me com técnicas absolutamente actuais e intemporais de Marketing – palavrão desconhecido durante a época moderna.
Nas linhas que se seguem serão explanadas ideias gerais do estudo realizado ao longo de trinta e sete meses em redor desta arte que é a comunicação, numa das suas mais distintas formas de expressão.




O que são então Relações de Sucessos

As relações de Sucesso são documentos que narram um acontecimento ocorrido e por vezes inventado, mas verosímil, com a finalidade de informar, entreter ou comover o público. Tratam de diversos temas como acontecimentos histórico-politicos, sucessos monárquicos, festas religiosas ou cortesãs, viagens, sucessos extraordinários como catástrofes naturais, milagres, desgraças pessoais, entre outros.
A sua forma também varia. Pode ser manuscrita ou impressa, estar em verso ou prosa e constar de uma só folha de papel ou chegar mesmo a ter as dimensões de um livro volumoso.
Surgem no século XV vinculadas ao género epistolar: A carta-relação, que informa geralmente um particular de algum acontecimento visionado pelo emissor. O seu uso foi-se estendendo pelo século XVI onde aparece a relação de sucesso de forma autónoma dirigida a um público mais amplo, para alcançar o seu apogeu no século XVII, sobretudo nos reinados de Filipe IV e Carlos II.
O seu desaparecimento está condicionado ao nascimento e êxito das Gazetas, já no século XVIII, que ampliam o mundo informativo ao contar as notícias.
A existência de Relações constata-se por toda a Europa, se bem que a sua edição decai com o auge das gazetas. À excepção de Espanha, onde aparecem como relato de um acontecimento ocasional e nunca periódico, perduram largamente com o novo estilo.
As relações tinham como função fazer perpetuar um feito a um leitor intemporal e transmitir uma informação quase sempre subjectiva e – em alguns casos – dirigida desde os sectores mais altos da sociedade.
O redactor escreve desde o seu ponto de vista, suprimindo ou inventando o que lhe parece, de tal forma que sempre que seja verídico o sucesso que conta, coloca sempre no título o adjectivo ‘verdadeira’ relação, com a finalidade de impressionar o receptor e seduzi-lo a comprar e a ler a mesma.
Através destes documentos reflectem-se muitos aspectos da cultura da Idade Moderna europeia. Trata-se de um material de valor inapreciável para os estudiosos da história, literatura, história das mentalidades, Antropologia, história da Arte, sociologia e sociologia da educação. Apesar da duvidosa qualidade literária destas relações está justificada até agora a escassez de investigações profundas sobre elas, a variada e rica informação que oferecem em vida ao estudo destes documentos e da sua riqueza vário pinta.
Até ao momento não existe um catálogo de relações de sucesso que englobe todas as relações no seu período de existência, só existem catálogos generalistas que cobrem diversos aspectos do seu estudo. O primeiro reportório de relações que conhecemos é o realizado por D. Jenaro Alenda e Mira (1903) referindo-se exclusivamente às relações de festas e é um instrumento valiosíssimo porque as descreve detalhadamente, nem sempre dá conta das relações que referem sucessos de outros temas, assim como outras datas que seriam de grande ajuda: localização, assinaturas, tamanho, número de paginas, encadernação, entre outros. Actualmente existem já abundantes trabalhos que estudam aspectos concretos das relações de sucessos, atendendo sobretudo às diversas tipologias de relações, em especial as festivas.
Os avanços informáticos incorporados nos trabalhos de catalogação permitem agora que se possa pensar num amplo projecto intelectual, com uma equipa multidisciplinar que aborde a sistemática catalogação de relações de sucessos espanholas conforme os critérios que permitam o seu estudo detalhado.

Das relações de sucessos ao nascimento do primeiro jornal

De uma maneira geral, pode dizer-se que o jornalismo nasceu, em Portugal como em qualquer outro País, da confluência de 3 factores distintos: o progresso da tipografia, a melhoria das comunicações e o interesse do público pela notícia.
Durante algum tempo manteve-se a ideia de que a imprensa periódica começara em Portugal com as referidas ‘relações de Severim de Faria’, no entanto, não podem assinalar o início do periodismo no nosso País por lhes faltar duas condições essenciais: a periodicidade e a continuidade ou encadeamento.
Estas características, aliadas à do objectivo eminentemente informativo, só se reúnem pela primeira vez nas chamadas ‘Gazetas da Restauração’, a primeira das quais tem o título, longo como todos os desse tempo, de ‘Gazeta em que se relatam as novas todas que houve nesta corte e que vieram de várias partes no mês de Novembro de 1641’.
No século XIX o grande veículo de propaganda política era a oratória sagrada, que tinha como figura dominante o padre António Vieira. Como dizia Sampaio Bruno: «Pregador era a maneira antiga de ser jornalista, como jornalista é a maneira moderna de ser pregador».
As relações não diminuíam com o aparecimento da Gazeta. Toda uma profusa Literatura de carácter panfletário, que incluía coplas, resumos, romances, cartas, entre outros – os quais ao mesmo tempo que manifestava aminosidade para com os espanhóis – não escondia a sua desconfiança em relação à alta aristocracia. Esses meios visavam superar as limitações da comunicação pelo livro, para alcançar, de forma rápida e fácil, um mais largo público interessado nos importantes acontecimentos que o País atravessava.
É nessa efervescência política, acompanhada de intensa agitação de ideias, que se inscreve o aparecimento entre nós do jornalismo. O mais importante significado que apresenta é, pois, o de tornar periódica uma informação que até aí fora irregular, ao saber da gravidade dos acontecimentos ou da vontade dos impressores.
Embora as condições fossem mais favoráveis após a restauração, a primeira Gazeta portuguesa estava ainda submetida às regras da censura previa estabelecidas na cerca de Filipe II e confirmadas por D. João IV pela lei de 29 de Janeiro de 1643, de acordo com as quais «não se imprimiam livros sem licença d’El-Rei». Poucos meses depois do começo da ‘Gazeta’, em 19 de Agosto de 1642, uma lei proibia as ‘Gazetas Gerais’, com notícias do reino ou de fora, em razão da pouca verdade de muitas e do mau estilo de todas elas».


O estabelecimento da Imprensa na ‘Gazeta de Lisboa’

O primeiro jornal setecentista conhecido é a Gazeta de que apenas se sabe existiram dois números, referentes aos meses de Agosto e Outubro de 1704. Não há notícia de outro até 1715, data em que aparece a ‘Gazeta de Lisboa’, com o fim de dar notícias nacionais e estrangeiras e as nomeações do governo português. Tornou-se assim a folha oficial, a exemplo do que acontecera, a partir de meados do século XVII, em diversos países da Europa onde surgiram periódicos oficiais ou oficiosos. No seu inicio, era redigida por José Freire de Monterroio Mascarenhas, acabando por exercer esse cargo por mais de 40 anos. Segundo a carta de privilégio que obtivera em 3 de Julho de 1752, oito anos antes de morrer, para publicar a ‘Gazeta’ enquanto fosse vivo, o periódico havia de aparecer uma vez por semana, às quintas-feiras, devendo cada número conter «quatro quartos de papel». Era imposta a qualquer pessoa «que se metesse a imprimir algum dos oito papéis» a pena de 50 cruzados, metade para a Real Câmara e metade para o acusador, perdendo também todas as gazetas que lhe fossem apreendidas «para o mesmo deprecante». Com os 5 números de Janeiro de 1760 findou a chamada «colecção das ‘Gazetas’ de Monterroio». Em 23 de Fevereiro seguinte foi-lhe concedido o privilegio de fazer a ‘Gazeta de Lisboa’ aos oficiais das secretarias dos Negócios Estrangeiros e de Guerra, então agregadas, a fim de que eles pudessem assim receber quantia suplementar, «atendendo a que os oficiais da Secretaria de estado da repartição dos Negócios Estrangeiros e da Guerra não recebem de suas ocupações alguns emolumentos, percebendo-as os oficiais das outras secretarias de estado. Por isso, a ‘Gazeta de Lisboa’ era então conhecida como ‘dos oficiais de secretaria’ e, publicada por conta deles próprios, ia-lhes dando apreciáveis proventos. Recomeçou, pois, em 22 de Julho de 1760, agora redigida pelo célebre poeta Pedro António Correia Garção, até 8 de Julho de 1762, data em que foi mandada suspender por ordem do governo pombalino (a última gazeta dessa época tem o número 23 e data de 15 de Junho de 1762). Embora possa dizer-se nunca ter exercido, ao longo da sua extensa vida, influência considerável nem atingido elevado nível, a ‘Gazeta de Lisboa’, longínquo antepassado do actual ‘Diário da República’, tem uma existência acidentada e interessante.


José Freire Monterroio Mascarenhas e a continuidade

José Freire Monterroio Mascarenhas foi um historiador curioso que nos deixou uma extensa memória da primeira metade do século XVIII em forma de notícias e relações que recebia, lia, seleccionava, traduzia, adaptava, escrevia e muitas vezes inventava.
Nascido em Lisboa em Março de 1670 era aficionado às letras desde jovem, formou parte de diversas Academias ao longo da sua vida: a dos Únicos, dos Canoros, dos Generosos, dos Anónimos, dos Aplicados. Passou dez anos da sua vida viajando pela Europa, terminando a sua formação e familiarizando-se com vários idiomas. No seu regresso a Portugal serviu como Capitão de Cavalaria na guerra de sucessão espanhola, entre 1704 e 1710.
O mais destacável da sua actividade profissional foi a autoria da ‘Gazeta de Lisboa’, publicação periódica que apareceu de forma ininterrupta entre 1715 e 1760, com periodicidade semanal. Durante todo este tempo o director e redactor foi Mascarenhas quem, a partir de 1752, obteve também o privilégio da sua impressão. É de destacar que nem depois do terramoto de 1 de Novembro de 1755 se interrompeu a sua publicação.
Desde o número 37 de 1742 até 1752 publicou-se também um ‘Suplemento à Gazeta de Lisboa’, organizado do mesmo modo, com notícias de diferentes países; poderia considerar-se então que a Gazeta nessa época era bissemanal. Também era Monterroio quem redigia este suplemento. Quando falamos em redigir referimo-nos à realização completa de toda a publicação: ele recebia as notícias do estrangeiro e seleccionava-as, quase sempre procedentes de gazetas, cartas e relações europeias que ele mesmo se encarregava de traduzir.
A redacção da Gazeta dependia em grande proporção das gazetas procedentes da Europa, não era uma mera tradução exclusiva de nenhuma em particular: o material era revisado e seleccionado de varias delas e ele intervinha no texto. Tinha também em conta outras fontes orais e manuscritas.
O trabalho de Mascarenhas ao mando da Gazeta de Lisboa é inseparável da sua faceta de escritor de relações: vemos em ambos os tipos de publicações um desenvolvimento paralelo.
Mascarenhas tinha muito clara a diferença que devia existir entre as notícias redigidas para a Gazeta e o maior detalhe que podia oferecer numa relação: ele mesmo assinalava como justificação para a escritura de algumas relações essa maior liberdade e amplitude que lhe permitia a publicação isenta, convertida deste modo numa continuação detalhada das notícias.
Muitas destas relações encontram-se anunciadas na ultima pagina da Gazeta, junto a noticias sobre livros recentemente impressos, publicidade sobre cursos de idiomas, livros perdidos e roubados, ou numerosos anúncios de compra/venda e procura de escravos com a descrição dos mesmos e a oferta de uma recompensa pela sua recuperação.
Não se sabe quem seleccionava os anúncios da Gazeta nem quais eram os critérios. O próprio Mascarenhas recebia pedidos para pôr anúncios na Gazeta, mas também os recebia os editores. Isto quer dizer que os anúncios que vemos nas gazetas em sempre correspondiam aos desejos dos seus directores/redactores, a menos que correspondesse a um interesse lucrativo por parte dos editores. Parece que houve uma vez em que Mascarenhas não estava de acordo com essa selecção que muitas vezes sem o saber reviam e acrescentavam os editores: foi mais um dos conflitos que levaram a solicitar para ele o privilégio de impressão só concedido em 1752.


Os critérios dos conteúdos

A transmissão de notícias na ‘Gazeta de Lisboa’ procura inserir os acontecimentos que relata numa continuidade histórica. Ela não se rege por poucos critérios de novidade. A definição de «novidade» ou «notícia» para um período como a Gazeta depende do seu carácter histórico, as quais não coincidem com as concepções jornalísticas de notícia que nos são hoje familiares.
Na gazeta narravam-se eventos de uma forma que tendia a reproduzir e fazer reconhecer um estado inalterado dos acontecimentos: gestos familiares, susceptíveis de reconhecimento pelos leitores de uma sociedade assente na tradição. O registo desses factos dependia de canais próprios de informação, bem definidos: as gazetas estrangeiras, a correspondência, a existência de testemunhas com dignidade abonatória, possuindo um carácter credibilizador das notícias publicadas no periódico.
A inclusão de determinadas notícias podia assim depender da dignidade social de quem solicitava a sua publicação ou do círculo mais restrito de amizades e relações do redactor. Ela dependia também do que a vigilância censória deixava passar. No topo da hierarquia da selecção noticiosa ficavam o rei e a família real, com as suas viagens, lazeres e estado de saúde. Depois, vinham os principais acontecimentos públicos ocorridos na corte envolvendo a nobreza cortesã, as mais importantes cerimónias religiosas e académicas e, eventualmente, acontecimentos do mesmo tipo nas principais cidades e províncias do reino.
Por fim, para concluir esta caracterização genérica das notícias, devemos esforçar-nos por inserir periódicos impressos como a Gazeta num ambiente em que a oralidade permanece dominante e em que o ver e o dizer são maioritários. A Gazeta tinha uma circulação relativamente restrita, não informava um grande público abstracto. As principais notícias e anúncios que incluía diziam respeito à cidade de Lisboa. Por isso mesmo, acontecimentos conhecidos de toda a população lisboeta não careciam nela de «relação particular», não precisavam de ser noticiados. O exemplo paradigmático é o terramoto de 1755: é escusado procurar na Gazeta uma notícia de que ocorreu um grande tremor de terra na cidade no 1º de Novembro de 1755. Essa é uma novidade bem conhecida de todos – e por isso não se lhe confere esse estatuto no periódico; é no interior desse acontecimento consabido que, aí sim, podemos encontrar notícias dignas de registo.
Não se pode afirmar que o público da Gazeta não se recrutasse entre os meios da Corte, da administração ou dos negócios. Para estes sectores da sociedade, estar atento ao conteúdo da Gazeta da Corte – como ela era também conhecida – era certamente importante. O que se põe em causa é que o fizessem para nela obterem informações de tipo utilitário, indispensáveis às suas actividades.

A desvalorização noticiosa

Junto de quem procurava informação, a Gazeta tendia a ser desvalorizada enquanto meio de transmissão de notícias. Há vários indícios que apontam para que esse menosprezo tenha sido comum ao longo de todo este período. De facto, como os canais de informação que forneciam Montarroio Mascarenhas assentavam, desde o início da publicação, nos períodos noticiosos do Norte da Europa. Isso fazia retardar o noticiário estrangeiro do periódico português. As notícias que vinham do estrangeiro podiam ser conhecidas com antecedência em relação à Gazeta pela leitura directa desses periódicos. Quanto às notícias sobre o reino, a vigilância política pela censura e pela corte faziam da Gazeta um instrumento demasiado condicionado na obtenção de informação. Quem estivesse interessado em obter notícias mais rápidas e circunstanciadas tinha de recorrer a outras fontes. O contraponto ao condicionamento que pesava sobre a Gazeta era o desenvolvimento de canais alternativos de informação: não apenas a leitura dos periódicos estrangeiros por quem se conseguia ler, como também a alimentação de redes pessoais de informação, que dependiam de oralidade ou da circulação de textos manuscritos, com a correspondência como veículo privilegiado. A agilidade da carta na obtenção de notícias é um fenómeno bem conhecido: as inúmeras correspondências conservadas em arquivos um pouco por toda a Europa sinalizam que o intercâmbio intelectual entre letrados – aqueles que se consideravam membros de uma «República das Letras» – era feito por uma activíssima e periódica troca de informação e de livros, feita por correspondência. O redactor da Gazeta estava inserido numa dessas redes de circulação de informação.
De reprodução menos abundante do que os impressos, os periódicos manuscritos tinham sobre eles a vantagem de não estarem, pelo menos de forma previa e sistemática, sujeitos a censura. Isto tornava a sua redacção mais rápida e, sobretudo, mais circunstanciada.
O discurso curto e satírico em torno das Gazetas impressas, que existiu também em Espanha, é outro dos sinais da insatisfação de um público leitor interessado em ler mais e melhores notícias do que as que elas traziam. Por exemplo, no prólogo da obra ‘Governo do mundo em seco…’, de Manuel José de Paiva, escreve-se: «(…) de fábulas achará o mundo cheio, e notícias tem Roma para dar, e vender; mas se não quer ir tão longe, leia Gazetas e verá o que são mentiras.» Afirmações como esta ajudaram-nos também a contextualizar o tom jocoso de um periódico como o ‘folheto de ambas Lisboas’, impresso na oficina da música entre 1730 e 1731, em que, a começar pelo título e pelo aspecto gráfico, o que ressalta em negativo parece ser uma crítica ao conteúdo da gazeta. Utilizando uma ironia permanente e, aos nossos olhos, bastante cifrada, algumas passagens de referido ‘folheto’ parecem constituir uma paródia do género Gazeta.
O sentido dessa paródia precisa ser investigado, mas as suas notícias ficcionadas poderão ter constituído um contraponto às do periódico da Corte: ausência de noticiário internacional, recurso a tipos sociais satíricos que remetem para a vida urbana e popular. De Lisboa, assim como para o mundo das academias. Na Gazeta, ao contrário, reinava uma rigorosa restrição social, desenrolando-se a maioria das suas notícias entre a família real e a aristocracia cortesã, por um lado, e os certames académicos, por outro.
Aqui chegados, explicitemos melhor a hipótese com que trabalhamos: devido à sua exclusividade como difusor de notícias impressas, uma dupla pressão se terá feito sentir sobre o periódico. Situado entre, por um lado, um condicionamento político directo e um controlo «oficioso» e, por outro, uma insatisfação instável. Essa posição não foi sempre a mesma entre 1715 e 1760. É por isso que, depois desta caracterização genética, se torna necessário averiguar de que forma ele evoluiu e se adaptou.


Histórias da gazeta

A gazeta de Lisboa nasceu por alvará régio e o regime de privilégio real que lhe estava associado garantia-lhe o exclusivo de todas as notícias, gazetas e mais papéis impressos do tipo noticioso. Isso permitiu à coroa manter sob controlo o conteúdo das notícias difundidas na forma impressa, designadamente as que eram relativas à Corte e ao reino. Os primeiros locais de impressão também apontam para a existência de uma proximidade com o Paço: ela era inicialmente impressa em oficinas de impressores régios como Valentim da Costa Deslandes, Pascoal da Silva, José António da Silva ou Pedro Ferreira, que eram também quem fazia as impressões das obras da Academia Real da História, colocada sob patrocínio directo de D. João V.
O privilégio de impressão concedido em 1715 a António Correia de Lemos era amplo: atribuía-lhe direitos sobre a impressão e a comercialização do periódico. Só com o seu consentimento outros impressores e livreiros o podiam fazer. Não sabemos qual era na prática a margem de manobra que o detentor do privilégio tinha para escolher a oficina.
Sabemos, no entanto, que existiu um primeiro litígio entre António Correia de Lemos e o impressor Pedro Ferreira em torno do periódico e que, a partir de 1734, ele passou a ser impresso na própria oficina de António Correia de Lemos. Referimos que um segundo conflito pelo privilégio de impressão se verificou entre os herdeiros de correia de Lemos e Monterroio Mascarenhas e que o dito privilégio acabou, já no reinado de D. José, por ser concedido a este último.
Uma explicação plausível para estas divergências pode ser encontrada na posição de monopólio da Gazeta, a que se associam os dois tipos de pressão a que ela estava sujeita: constrangimentos à publicação de informação rápida e circunstanciada; como uma consequência, uma desvalorização da Gazeta junto de um público mais alargado. No interior dessa relação conflituosa estavam os homens que foram produzindo a publicação ao longo do tempo, redigindo-a e levando-a à estampa. Os litígios existentes entre eles, quando acompanhados de perto, podem trazer-nos um ponto mais de luz sobre as contradições que atravessam a nossa fonte.
António Correia de Lemos e os seus sucessores, na qualidade de impressores e de homens ligados ao ofício do livro, parecem ter sido sensíveis a esse estímulo e procuraram conduzir o periódico para junto de um público mais alargado do que o que ele tinha inicialmente. Esse facto terá levado progressivamente a Gazeta, num período que podemos fazer coincidir com o segundo quartel do século XVIII, e de forma nítida entre 1740 e 1752, para um rumo diferente do inicial. Isso viria a transformar, também lentamente a sua forma e o seu conteúdo.
O «Mapa da despesa…» dá-nos números acerca da tiragem, despesas e receitas do periódico. Entre 1740 e 1748 eram feitos 1500 exemplares por número da ‘Gazeta de Lisboa’, a que se juntavam 1000 exemplares do ‘Suplemento à Gazeta’. Entre 1741 e 1748 o administrador da Gazeta era José Roiz Roles, que começara a exercer essa função à morte de António Correia de Lemos, seu tio. Sabemos também que os suplementos só se iniciam em 1742, mais exactamente a partir de 20 de Setembro. Portanto, e no que toca aos suplementos, esta informação só pode ser válida a partir de 1742. Por outro lado, uma outra informação de que dispomos sobre a tiragem da gazeta, proveniente do ‘Folheto de Lisboa’, e datando de Abril de 1742, dá notícia de um aumento de tiragem de 200 exemplares. Isto numa altura em que, segundo a mesma fonte, se imprimiam até então 450 exemplares.
Na realidade, os primeiros sinais de crescimento da gazeta datam de 1717, com um aumento do número de páginas de quatro para oito páginas. Em 1734, esse número cresceu para as doze. A passagem a bissemanal acentuou essa tendência: ao crescimento do espaço de texto no periódico vinha juntar-se então um maior ritmo noticioso. Ela passava a difundir mais depressa mais notícias vindas de fora, mais notícias sobre o reino e mais anúncios.
Entre 1740 e 1748, segundo o referido «Mapa de despesa…», o preço de venda da Gazeta era de 40 réis e o do ‘Suplemento’ de 30 réis. A diferença de preço entre uma e outra explica-se certamente pelo menor número de páginas que este tinha (8 para 12 da ‘Gazeta’).
Segundo o «Mapa de despesa…», entre 1740 e 1748 a ‘Gazeta’ e os suplementos davam um lucro importante, sendo nessa altura a receita anual da administração de 3098$100 réis (59$580 réis por semana). Segundo este «Mapa…», as receitas do administrador provinham exclusivamente da venda das gazetas. A limitação da venda a um só livreiro nestes anos contrasta com o que aconteceu depois de 1752. Em 1757 há notícia de a ‘gazeta’ à venda na cidade do Porto, na loja do tenente António Pires, Henriques, «mercador de livros na rua dos mercadores». À volta de informação mais definida sobre esta questão – é possível, que os ‘papelistas’ também vendessem ‘Gazetas’ - , os dados recolhidos nos anúncios permitem colocar a hipótese de estarmos perante duas atitudes distintas em relação à venda do periódico. Com uma venda concentrada durante mais de duas décadas e mantendo o grosso das receitas para si, os detentores do privilégio terão podido controlar melhor a gestão do periódico e fazer mais lucro. O periódico entre 1740 e 1749 parece ter sido marcado por esta preocupação: vender mais gazetas e poupar nas despesas.

Susana M. Ribeiro