sexta-feira, agosto 22, 2003

O ENSINO DO JORNALISMO VISTO PELOS JORNALISTAS

João Correia, Universidade da Beira Interior

1. O ensino do jornalismo nas escolas superiores de Comunicação Social preocupa os jornalistas de uma forma acentuada. O Congresso dos Jornalistas Portugueses dedicou a este tema mais do que uma simples observação. Na prática, a sucessão geracional que se verifica no interior da classe acabou por se tornar o principal elemento de discussão no interior daquele forum. Confrontados com a chegada em massa de jovens profissionais ao mercado de trabalho, os dirigentes sindicais lançaram grande parte do seu discurso sobre a identidade da classe. Como se aprende a profissão? Quais as condições que é necessário preencher para que se possa dizer que se é oficial de tal ofício? Será que só é jornalista quem escreve nos jornais? Como é que se forma um jornalista? Se é a situação profissional que o define - exercida a tempo inteiro e renumerada, como ocupação principal - então será que todos os que escrevem nos jornais e deles retiram os seus proventos maioritários são, por definição, jornalistas? Ou, pelo contrário, ser-se jornalista pressupõe a adopção de um certo estilo e de técnicas narrativas e de recolha de dados, o que implica alguma padronização de um saber especializado? Quando descemos ao concreto, a resposta perde a sua evidência.

2. A discussão sobre o ensino do jornalismo está bem longe de ser nova. De uma forma simplista, podemos pensar de que um lado estão os defensores da boa "tarimba", que acreditam que o talento jornalístico não pode ser ensinado nas academias já que a prática e a experiência, mãe de todos os saberes, fornecerão os elementos essenciais aos profissionais para exercerem o seu mester com arte e sabedoria. Do outro, surgem os teóricos que afirmam que sem uma cuidada preparação ética, deontológica, filosófica, sociológica, cultural e técnica, o jornalista não está preparado para exercer a sua profissão. A preto e branco, as posições poderiam resumir-se a estas duas. O Congresso dos Jornalistas Portugueses trouxe para o exterior esta discussão, tendo ficado claro que, mesmo no interior da profissão, as opiniões se dividem. Todavia, a questão está longe de se esgotar aqui. Aceitando-se que existam saberes que devem e podem ser ensinados, quais os que devem ser ministrados no ensino superior? Serão esses saberes específicamente dirigidos para o Jornalismo ou o Jornalismo deve ser integrado num corpo teórico mais amplo que, geralmente se designa por Comunicação Social ou Ciências da Comunicação? Deverá ser obrigatório ser titular de uma Licenciatura para se ser jornalista? Mais ainda, deverá ser-se titular obrigatório de uma licenciatura específica ? Se for esse o caso, mais uma vez , quais os saberes que a devem integrar?

3. A querela entre teóricos e práticos é antiga, embora seja previsível que as razões e os argumentos das partes tenham mudado. Do 1º Boletim do do Sindicato dos Trabalhadores de Imprensa (1926) já constava a proposta de criação de uma Escola Superior de Jornalismo que, ao tempo, mereceu o seguinte comentário do Director do Comércio do Porto: "da mesma forma que não há escola de poesia também não há escolas de jornalistas.". Em 8 de Fevereiro de 1941, o Presidente da Comissão Administrativa do Sindicato Nacional de Jornalistas entregou ao Subsecretário de Estado da Educação Nacional um ofício dirigido ao Ministro da tutela onde se continha um projecto de um Curso de Formação Jornalística, justificado pela necessidade de "promover, de maneira decisiva, a valorização profisional dos jornalistas bem como o seu nível de cultura para os limites exigidos para a missão que desempenha." Finalmente, em Fevereiro de 1970, uma delegação da direcção sindical composta, entre outros, por Cáceres Monteiro, António dos Reis, Jacinto Baptista, José Lechner, Oliveira Figueredo e João Gomes apresentam a proposta de criação do Ensino Superior de Jornalismo, acompanhada do respectivo estudo. Para Silva Costa, Presidente do Sindicato, "estará chegada a vez de Portugal possuir o ensino do jornalismo a nível universitário." O estudo prevê que o Curso teria uma duração idêntica à dos restantes cursos existentes em Portugal, quer para Bacharelato quer para licenciatura. O projecto previa a atribuição do grau de Bacharel, Licenciado e Doutor. Entre 1941 e 1970, a classe foi perpassada por numerosos projectos e debates que, no essencial apontavam para a criação do Ensino Superior neste domínio. A criação do ensino universitário de jornalismo identificou-se, em larga medida, com a defesa da própria liberdade de expressão. Já então se percebia que a defesa da formação universitária nesta área era uma exigência que se identificava com a aprópria dignificação da profissão. O jornalismo era das poucas profissões intelectuais que era exercida sem Curso Superior. A introdução do ensino superior obrigaria à dignificação dos profissionais em termos renumeratórios e em termos da sua capacidade de intervenção. Obviamente, esta posição teve e tem inimigos. Será que ninguém se dá conta dos interesses estratégicos que existem por detrás das posições assumidas pelos principais grupos empresariais contra a obrigatoriedade de licenciatura? Será que não se compreende, de forma clara, que a tendência para elevar a formação dos quadros pertencentes a uma pofissão introduz também o problema do seu estatuto renumeratório?

4. O principal defeito de algumas das referências feitas no Congresso dos Jornalistas Portugueses em relação à formação exigida para se exercer a profissão vislumbra-se na exaltação de uma certa prática do jornalismo que remete para um "ontem" melhor do que o de hoje". O Sindicato preocupa-se com o destino dos jovens jornalistas que levam a cabo estágios que não são acompanhados pelo conselho de um chefe eventualmente aborrecido mas atento e paternal. Os jornalistas da jovem geração perderiam algo da essência da missão que lhes competia por não compartilharem desta iniciação, a qual, supõe-se, constituiria uma forma de aprendizagem mais séria e competente do que a que é propagada pelos Cursos de Comunicação e de Jornalismo. Trata-se de um de uma preocupação justa. A precaridade de trabalho é inimiga da liberdade de expressão. Porém, não me parece que a crítica a essa precaridade possa ser sustentada por um discurso da perda ou da queda em relação a um estádio eventualmente menos interesseiro e competivo quando é sabido que o maior obstáculo à liberdade de expressão eram, nesse "antes" que se contrapõe ao "hoje", além da precaridade e dos baixos salários, a existência da Censura e do Exame Prévio.
Finalmente, não me parece que essa crítica possa ser sustentada por qualquer termo de comparação implícita que coloque o Chefe de Redacção ou o colega de tarimba num posição mais favorável do que a do docente universitário do Curso de Comunicação ou Jornalismo. Para já, isso não seria realista e significaria uma espécie de negação do que é irreversível. Por outro lado, significaria um recuo implícito às posições insistentemente tomadas pelo Sindicato dos Jornalistas, desde 1941, que claramente apontam para o Ensino Superior como exigência para a formação dos jornalistas.
Nesse sentido, o que parece realista e razoável não é fazer um discurso generoso contra o excesso de competividade. Importa, isso sim, enfrentar os desafios de hoje. Estes passam por uma jogada em vários tabuleiros que não são contraditórios: exigir uma formação crescente dos jornalistas, que compreende uma clara dimensão universitária e um olhar cada vez mais interessado à componente ética e fazer o possível para que esse percurso académico seja cada vez mais perfeiçoado à dimensão teórica e prática da preparação dos profissionais. O resto é estéril, antiquado e tem a ver com a realidade de uma classe que conhece mutações cada vez mais aceleradas..


A ideologia americana

Samir Amin


Hoje, os Estados Unidos da América são governados por uma Junta de criminosos de guerra que tomaram o poder através de uma espécie de golpe de Estado. Esse golpe pode ter sido precedido por (dúbias) eleições, mas não devemos esquecer-nos nunca de que Hitler também foi um político eleito. Nesta analogia, o 11 de Setembro preenche a função do “incêndio do Reichstag”, permitindo à Junta conceder às suas forças policiais poderes similares aos da Gestapo. Eles têm o seu próprio 'Mein Kampf' – o documento de 'National Security Strategy' - , as suas próprias associações de massas – as organizações “patrióticas” – e os seus próprios pregadores. É vital que tenhamos a coragem de dizer estas verdades, deixando de as mascarar com frases feitas sobre os “nossos amigos americanos”, as quais perderam já todo qualquer significado.

A cultura política é um produto a longo termo da História. Como tal, é obviamente específica a cada país. A cultura política norte-americana é claramente diferente da que emergiu da história do continente europeu: foi moldada pela colonização da Nova Inglaterra por seitas protestantes extremistas, pelo genocídio dos povos indígenas, pela escravização dos africanos e pelo surgimento de comunidades etnicamente segregadas como resultado de sucessivas vagas de migração ao longo do século XIX.

II

A modernidade, o secularismo e a democracia não são o resultado de uma evolução nas crenças religiosas, ou mesmo de uma revolução; pelo contrário, é a fé que tem tido que se ajustar para responder ao que lhe é imposto por aquelas novas forças. Esse ajustamento não é um exclusivo do protestantismo; teve o mesmo impacto no mundo católico, embora de um modo algo diverso. Um novo espírito religioso nasceu, liberto de todo o dogma. Nesse sentido, não foi a Reforma que forneceu as condições para o desenvolvimento capitalista, embora esta tese de Max Weber tenha tido ampla aceitação nas sociedades protestantes europeias, que se lisonjearam com a importância que ela lhes atribuía. Nem representou a Reforma a mais radical ruptura possível com o passado ideológico da Europa e o seu sistema “feudal”, incluindo anteriores interpretações do cristianismo. Bem pelo contrário, a Reforma foi apenas a mais confusa e a mais primitiva forma dessa ruptura.

Um aspecto da Reforma foi obra das classes dominantes, conduzindo à criação de igrejas nacionais (Anglicanas e Luteranas) controladas por essas classes. Essas igrejas representaram um compromisso entre a burguesia ascendente, a monarquia e os grandes senhores agrários, através do qual todos eles puderam conter a ameaça dos pobres e do campesinato. Marginalizou-se efectivamente a ideia católica da universalidade, estabelecendo igrejas nacionais que consolidaram de modo particular o poder da monarquia, reforçando o seu papel como árbitro entre as forças do antigo regime e as da burguesia ascendente. O nacionalismo destas classes foi revigorado, assim se retardando a emergência de novas formas de universalismo, que viriam mais tarde a ser promovidas pelo socialismo internacionalista.

Contudo, outros aspectos da Reforma foram impostos pelas classes baixas, que eram as principais vítimas das transformações sociais causadas pelo nascimento do capitalismo. Esses movimentos recorreram a formas de luta tradicionais, conhecidas já dos movimentos milenaristas da Idade Média. Consequentemente, em vez de tomar a vanguarda, eles ficaram para trás, não respondendo às necessidades do seu tempo. As classes dominadas teriam de esperar até à Revolução Francesa – com as suas formas de mobilização seculares, populares e radicalmente democráticas – e o advento do socialismo para encontrar maneiras de formular efectivamente as suas exigências com respeito às novas condições em que viviam. Os primeiros grupos protestantes modernos, pelo contrário, estavam mergulhados em ilusões fundamentalistas, o que por sua vez encorajou uma infinita replicação de seitas engajadas no mesmo tipo de visão apocalíptica que hoje prolifera por todo o território dos EUA.

As seitas protestantes que foram forçadas a emigrar da Inglaterra no séc. XVII desenvolveram uma forma de cristianismo peculiar, distinta tanto do dogma católico como do ortodoxo. Na verdade, o seu tipo de cristianismo não era sequer partilhado pela maioria dos protestantes europeus, incluindo os anglicanos de que era composta a maioria da classe dominante britânica. Em termos gerais, podemos dizer que o génio essencial da Reforma foi reclamar o Velho Testamento, que o Catolicismo e a Igreja Ortodoxa tinham marginalizado quando definiram o Cristianismo como um corte com o Judaísmo. Os protestantes restauraram a Cristandade no seu lugar de sucessor legítimo do Judaísmo.

A forma particular de protestantismo que achou o seu caminho até à Nova Inglaterra continua a enformar a ideologia americana até aos dias de hoje. Primeiro, facilitou a conquista de um novo continente ancorando a sua legitimidade em referências tiradas das escrituras (a violenta conquista da terra prometida pelo Israel bíblico é um tema constantemente reiterado no discurso norte-americano). Mais tarde, os EUA alargaram a sua missão divina até abranger o globo inteiro. Assim os norte-americanos acabaram por se encarar a si próprios como o “povo escolhido” – na prática, um sinónimo para o termo nazi herrenvolk . É esta a ameaça que nos confronta hoje. E é por isto que o imperialismo norte-americano (não o “Império”) será ainda mais brutal que os seus predecessores, a maioria dos quais nunca reclamou ter sido investida com uma missão divina.

III

Não me conto entre aqueles que acreditam que o passado se repete inexoravelmente. A história transforma os povos. Foi isso que aconteceu na Europa. Infelizmente, contudo, a história da nação norte-americana, longe de contribuir para erradicar o horror das suas origens, contribuiu pelo contrário para reforçar a presença desse horror, perpetuando os seus efeitos. Isto é verdade tanto quanto à chamada “revolução” norte-americana como à posterior sedimentação do país por sucessivas vagas de migração.

Apesar das presentes tentativas de promoção das suas virtudes, a “revolução norte-americana” nunca passou de uma limitada guerra de independência, desprovida de qualquer dimensão social. Em nenhum momento no decurso da sua revolta contra a monarquia britânica tentaram os colonos norte-americanos transformar as relações económicas e sociais – simplesmente recusaram-se a continuar a partilhar os seus lucros com a classe dominante da “metrópole”. Queriam o poder para si próprios, não para modificar o estado das coisas existente mas para continuar a fazer exactamente as mesmas coisas, embora porventura com maior determinação e maiores margens de lucro. O seu objectivo primário era prosseguir a colonização do Oeste, o que implicava – entre outras coisas – o genocídio dos nativos norte-americanos. Por outro lado, os “revolucionários” nunca contestaram a escravatura. Na verdade, a maioria dos grandes dirigentes da revolução era possuidora de escravos e os seus preconceitos nesta matéria eram inamovíveis.

O genocídio dos norte-americanos nativos estava implícito na lógica da missão divina do novo povo escolhido. O seu massacre não pode ser simplesmente assacado à moralidade de um passado distante e arcaico. Bem até à década dos 1960's, o acto de genocídio era proclamado de forma aberta e orgulhosa. Os filmes de Hollywood contrastavam o “bom” vaqueiro com o “mau” índio e este travesti do passado foi central na educação de gerações sucessivas.

O mesmo é verdade para a escravatura. Após a independência, perto de um século teve ainda de decorrer antes da abolição da ignominiosa instituição. E apesar das proclamações da Revolução Francesa, a abolição, quando veio, não teve nada a ver com razões morais – aconteceu apenas porque a escravatura já não servia à causa da expansão capitalista. Deste modo, os afro-americanos tiveram que esperar ainda mais outro século até lhes serem concedidos os mais elementares direitos cívicos. E mesmo então, o racismo profundamente enraizado da classe dominante não foi sequer tocado. Até à década de 1960, os linchamentos eram uma ocorrência banal, fornecendo o pretexto para a realização de pic-nics de família. Na verdade, a prática do linchamento persiste ainda hoje, de uma forma indirecta e mais discreta, na forma de um sistema de “justiça” que envia milhares de pessoas para a morte – a maioria delas afro-americanos – apesar de ser conhecimento comum que pelo menos metade dos condenados são inocentes.

Sucessivas vagas de imigração ajudaram também a fortalecer a ideologia americana. Os imigrantes não são certamente responsáveis pela miséria e opressão que causaram a sua partida. Deixaram as suas terras de origem como vítimas. Todavia, a emigração significou também a renúncia à luta colectiva pela transformação das condições de vida no seu país de origem; trocaram o seu sofrimento pela ideologia individualista do país de acolhimento e pela ilusão de “içarem-se a si próprios puxando pelas presilhas das botas”. Esta mudança ideológica serve também para retardar a emergência da consciência de classe, a qual mal tem tempo de se desenvolver e logo a chegada de uma nova vaga de imigrantes faz abortar a sua expressão política. É claro, a migração contribui também para a existência de “poderes étnicos” na sociedade norte-americana. A noção de “sucesso individual” não exclui o desenvolvimento de comunidades étnicas fortes e solidárias (irlandesas ou italianas, por exemplo), sem as quais o isolamento se tornaria insuportável. E todavia, também aqui, o fortalecimento das identidades étnicas é um processo cultivado pelo sistema americano e por ele inteiramente recuperado, uma vez que ele serve inevitavelmente para quebrar a consciência de classe e de cidadania activa.

Deste modo, enquanto o povo de Paris se preparava para partir “ao assalto do céu” (como os comuneiros de 1871 diziam), as cidades norte-americanas eram palco de uma série de guerras de morticínio entre bandos formados por sucessivas gerações de imigrantes pobres (irlandeses, italianos, etc.), cinicamente manipulados pela classe dirigente.

Nos EUA não existe hoje, nem nunca existiu, qualquer partido trabalhista. Os poderosos sindicatos operários são apolíticos, no mais completo sentido do termo. Não têm qualquer ligação com um partido que possa dar voz às suas preocupações, nem conseguiram alguma vez, por si mesmos, articular uma visão socialista original. Em vez disso, subscrevem a ideologia liberal dominante, que assim se mantém indisputada. Quando eles lutam é sempre apenas por uma agenda limitada e específica que nunca e de forma alguma põe em questão o liberalismo. Neste sentido, foram sempre e mantêm-se “pós-modernistas”.

E contudo, para a classe trabalhadora, os apegos comunitaristas não podem substituir a ideologia socialista. Isto é verdade mesmo para os afro-americanos – a mais radical comunidade nos EUA – pois que a luta das ideologias comunitaristas é, por definição, limitada à luta contra o racismo institucionalizado.

Uma das facetas mais negligenciadas das diferenças entre as ideologias “europeias” (em toda a sua diversidade) e a ideologia americana é o impacto que o Iluminismo teve no seu desenvolvimento. Sabemos que a filosofia do Iluminismo foi o evento decisivo que lançou a criação das culturas e ideologias modernas da Europa. O seu impacto mantém-se considerável até aos dias de hoje, não apenas nos centros primordiais de desenvolvimento capitalista, sejam eles católicos (como a França) ou protestantes (Inglaterra e Holanda), mas também na Alemanha e até mesmo na Rússia.

Compare-se isto com a situação nos EUA, onde o Iluminismo teve apenas um impacto marginal, influenciando apenas uma minoria “aristocrática” (e pró-esclavagista) – aquele grupo que se corporizou para a posteridade em Jefferson, Madison e um punhado de outros. Em geral, as seitas da Nova Inglaterra não foram afectadas pelo espírito crítico do Iluminismo. A sua cultura manteve-se mais próxima do espírito das bruxas de Salem do que do racionalismo ateu das Luzes.

Os frutos desta recusa emergiram quando a burguesia ianque chegou à idade adulta. De Nova Inglaterra surgiu um credo simplista e erróneo sustentando que a “Ciência” (isto é, as ciências duras, tais como a Física) deve determinar o destino da sociedade – uma opinião que tem sido amplamente partilhada nos EUA há mais de um século, não só entre as classes dirigentes mas também no povo em geral.

Esta colocação da ciência no lugar da religião é responsável por alguns dos aspectos mais salientes da ideologia americana. Explica porque é que a filosofia é tão pouco importante, reduzida que foi ao mais pobre empiricismo. De igual modo é a causa dos frenéticos esforços para reduzir as ciências humanas e sociais a ciências “puras” (isto é, “duras”): a economia “pura” toma assim o lugar da economia política e a ciência dos “genes” substitui a antropologia e a sociologia. Esta última e infeliz aberração fornece outro ponto de contacto estreito entre a ideologia americana contemporânea e a ideologia nazi, que é sem dúvida facilitado pelo profundo racismo que percorre toda a história norte-americana. Outra aberração saída desta peculiar visão da ciência é um pendor para a especulação cosmológica (de que a teoria do “big bang” é o exemplo mais conhecido).

Entre outras coisas, o Iluminismo ensinou-nos que a Física é a ciência de certos aspectos limitados do Universo que têm sido isolados como objecto de pesquisa específica, não a ciência do Universo na sua totalidade (o que será um conceito mais metafísico do que científico). A este nível, o sistema americano de pensamento está mais próximo das tentativas pré-modernas de conciliação entre a fé e a razão do que da moderna tradição científica. Esta visão regressiva era perfeitamente adequada aos propósitos dos sectários protestantes da Nova Inglaterra e ao tipo de sociedade profundamente impregnada de religião por eles construída.

Como sabemos, é este tipo de regressão que agora ameaça a própria Europa.

IV

Os dois factores que moldaram a formação histórica da sociedade norte-americana – uma ideologia dominante de raiz bíblica e a ausência de um partido trabalhista – combinaram-se para produzir uma situação inteiramente nova: um sistema dirigido por um partido único de facto, o partido do capital.

Os dois segmentos que compõem este partido partilham a mesma forma essencial de liberalismo. Ambos se dirigem apenas à minoria de participantes neste tipo de democracia truncada e impotente (uns 40 por cento do eleitorado). Uma vez que a classe trabalhadora, por regra, não vota, cada um dos segmentos do partido tem o seu próprio público-alvo de classe média, ao qual ajustou o seu discurso. Ambos construíram também as suas clientelas, compostas por uma série de interesses capitalistas organizados (lobbies) e grupos comunitários de apoio.

A democracia norte-americana constitui hoje o modelo avançado do que eu já denominei como “democracia de baixa intensidade”. O seu funcionamento é baseado numa total separação entre a administração da vida política, através da prática da democracia eleitoral, e a administração da vida económica, que é governada pelas leis da acumulação capitalista. Ademais, esta separação não está sujeita a qualquer forma de contestação radical, fazendo parte do que se pode considerar como um consenso geral. E no entanto é esta mesma separação que destrói efectivamente todo o potencial criativo da democracia política. Ela castra as instituições representativas (parlamentos e por aí adiante), as quais são tornadas impotentes pela sua submissão ao “mercado” e aos seus ditames. Neste sentido, a escolha entre votar nos Democratas ou nos Republicanos é na verdade fútil, pois que o que determina o futuro do povo norte-americano não é o resultado das suas opções eleitorais, mas sim os altos e baixos dos mercados, financeiros e outros.

Daí resulta que o Estado norte-americano existe exclusivamente para servir a Economia (i.é, o capital, ao qual obedece cegamente, negligenciando por completo as questões sociais). Ao Estado é permitido funcionar desta maneira por uma razão principal: por causa do processo histórico de formação da sociedade norte-americana, que bloqueou o desenvolvimento de uma consciência política própria das classes trabalhadoras.

Compare-se isto com o Estado europeu, que tem sido (e pode tornar-se novamente) um indispensável fórum no qual se desenrola o confronto entre os diversos grupos de interesse sociais. É por isso que o Estado europeu favorece os compromissos sociais, os quais dão algum significado real às práticas democráticas. Quando a luta de classes, e outras lutas políticas, não forçam o Estado a funcionar deste modo, quando elas não se conseguem sequer manter autónomas face à lógica exclusiva da acumulação do capital, então a democracia torna-se um exercício completamente desprovido de sentido – como é o caso nos EUA.

A conjugação de uma prática religiosa dominante – e a sua exploração por intermédio de um discurso fundamentalista – com a ausência de consciência política entre as classes oprimidas dá ao sistema político dos EUA uma margem de manobra sem precedentes, com a qual se consegue destruir por completo o potencial impacto das práticas democráticas, reduzindo-as a rituais inócuos (a política como entretenimento, a inauguração das campanhas políticas com claques festivas, etc.).

Contudo, não nos podemos deixar iludir. Não é a ideologia fundamentalista que ocupa o posto de comando e impõe a sua lógica aos detentores reais do poder – o capital e os seus serventuários no Governo. É o capital, e ele apenas, que toma todas as decisões. Só depois de o fazer é que mobiliza a ideologia americana para servir a sua causa. Os meios empregues – o uso sistemático e sem precedentes da desinformação – podem então cumprir os seus objectivos, isolando os críticos e sujeitando-os a formas permanentes e odiosas de chantagem. Deste modo, o establishment pode facilmente manipular a “opinião pública”, cultivando a sua estupidez.

Graças a este contexto, a classe dominante norte-americana desenvolveu uma espécie de cinismo total, envolto numa capa exterior de hipocrisia que é perfeitamente transparente para observadores externos, mas que por algum meio parece ser invisível para o próprio povo norte-americano. O regime recorre com agrado à violência, mesmo nas suas formas mais extremas, sempre que necessário. Todos os activistas radicais norte-americanos sabem isso de sobejo: as únicas opções em aberto para eles são acomodarem-se ou serem mortos um dia.

Como todas as outras ideologias, a ideologia americana está “cada vez mais gasta e envelhecida”. Durante períodos de calma – marcados por forte crescimento económico, acompanhado por aquilo que passa por aceitáveis níveis de distribuição social – a pressão das classes dirigentes sobre o seu povo naturalmente suaviza-se. Assim, de tempos a tempos o establishment tem que revigorar essa ideologia usando os métodos clássicos: um inimigo (sempre um estrangeiro, já que a sociedade norte-americana foi decretada boa por definição) é designado (o império maligno, o eixo do mal), o qual justificará a mobilização de todos os meios possíveis com vista a aniquilá-lo. No passado esse inimigo era o comunismo. O macartismo (um fenómeno esquecido pelos pró-americanos de hoje) tornou possível o lançamento da guerra fria e a marginalização da Europa. Hoje é o “terrorismo” (claramente apenas um pretexto) que é aproveitado para servir o verdadeiro projecto da classe dominante: o controlo militar do planeta.

O objectivo confesso da nova estratégia hegemónica norte-americana é prevenir a emergência de qualquer outra potência que possa ser capaz de colocar resistência face às injunções de Washington. É pois necessário desmantelar países que se tornaram demasiado “grandes”, de modo a criar o máximo número de satélites prontos e dispostos a aceitar bases norte-americanas no seu solo, para sua “protecção”. Como todos os seus últimos três presidentes (Bush sénior, Clinton e Bush júnior) concordaram, um único país tem o direito a ser “grande”, que é naturalmente os Estados Unidos da América.

Neste sentido, a hegemonia dos EUA depende em última análise do seu poder militar desproporcionado, mais do que de alguma específica “vantagem” do seu sistema económico. Graças a este poder, os EUA podem afirmar-se como o dirigente incontestado da máfia global, cujo “punho visível” imporá a nova ordem imperialista àqueles que poderiam de outro modo estar relutantes em entrar nos eixos.

Encorajada pelos seus recentes sucessos, a extrema-direita tem agora um firme controlo das rédeas do poder em Washington. A opção oferecida é clara: ou aceitar a hegemonia dos EUA, com o ultra-reforçado “liberalismo” que ela promove e que pouco mais significa que uma exclusiva obsessão com ganhar dinheiro – ou rejeitá-los a ambos. No primeiro caso, estaremos a dar a Washington livres poderes para “redesenhar” o mundo à imagem do Texas. Só escolhendo a segunda alternativa poderemos ser capazes de fazer algo para ajudar a reconstruir um mundo que seja essencialmente pluralista, democrático e pacífico.

Se tivessem reagido em 1935 ou em 1937, os europeus poderiam ter sido capazes de deter a loucura nazi antes que ela tivesse feito tanto mal. Adiando até 1939, contribuíram para as suas dezenas de milhões de vítimas. É nossa responsabilidade actuar agora, para que o desafio neo-nazi de Washington possa ser contido e eliminado.

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Samir Amin, economista de prestígio internacional, é um dos mais destacados intelectuais marxistas da contemporaneidade. Idealizador do Fórum Social Mundial, dirige o Forum du Tiers Monde, em Dakar, no Senegal. Autor de obras fundamentais, entre as quais L'accumulation a l'échelle mondiale,Le développement inégal, Le capitalisme sénile.
Este artigo foi publicado originalmente no semanário Al-Ahram (Cairo), edição de 15-21 de Maio de 2003, podendo ser encontrado em http://weekly.ahram.org.eg/2003/638/focus.htm. Foi republicado, em português, no excelente site resistir.info. Tradução de Ângelo Novo.
El desafío ético de la globalización

Zygmunt Bauman

"Globalización" significa que todos dependemos unos de otros. Las distancias importan poco ahora. Lo que suceda en un lugar puede tener consecuencias mundiales. Gracias a los recursos, instrumentos técnicos y conocimientos que hemos adquirido, nuestras acciones abarcan enormes distancias en el espacio y en el tiempo. Por muy limitadas localmente que sean nuestras intenciones, erraríamos si no tuviéramos en cuenta los factores globales, pues pueden decidir el éxito o el fracaso de nuestras acciones. Lo que hacemos (o nos abstenemos de hacer) puede influir en las condiciones de vida (o de muerte) de gente que vive en lugares que nunca visitaremos y de generaciones que no conoceremos jamás.
Seamos conscientes o no, éstas son las condiciones bajo las que hacemos hoy nuestra historia común. Aunque buena parte (y muy posiblemente toda o casi toda) la historia que se va tejiendo dependa de decisiones humanas, las condiciones bajo las que se toman estas decisiones escapan a nuestro control.

Una vez derribados la mayoría de los límites que antes confinaban nuestra potencial acción a un territorio que podíamos inspeccionar, supervisar y controlar, hemos dejado de poder protegernos, tanto a nosotros como a los que sufren las consecuencias de nuestras acciones, de esta red mundial de interdependencias.

No se puede hacer nada para dar marcha atrás a la globalización. Uno puede estar "a favor" o "en contra" de esta nueva interdependencia mundial. Pero sí hay muchas cosas que dependen de nuestro consentimiento o resistencia a la equívoca forma que hasta la fecha ha adoptado la globalización.

Hace sólo medio siglo, Karl Jaspers podía aún separar limpiamente la "culpa moral" (el remordimiento que sentimos cuando hacemos daño a otros seres humanos, bien por lo que hemos hecho o por lo que hemos dejado de hacer) de la "culpa metafísica" (la culpa que sentimos cuando se hace daño a un ser humano, aunque dicho daño no esté en absoluto relacionado con nuestra acción). Esta distinción ha perdido su sentido con la globalización. La frase de John Donne "no preguntes nunca por quién doblan las campanas; están doblando por ti" representa como nunca la solidaridad de nuestro destino, aunque todavía esté lejos de ser equilibrada por la solidaridad de nuestros sentimientos y acciones.

Cuando un ser humano sufre indignidad, pobreza o dolor, no podemos tener certeza de nuestra inocencia moral. No podemos declarar que no lo sabíamos, ni estar seguros de que no hay nada que cambiar en nuestra conducta para impedir o por lo menos aliviar la suerte del que sufre. Puede que individualmente seamos impotentes, pero podríamos hacer algo unidos. Y esta unión está hecha de individuos y por los individuos.

El problema es, como alegaba Hans Jonas, otro gran filósofo del siglo XX, que, aunque el espacio y el tiempo ya no establezcan límites a las consecuencias de nuestras acciones, nuestra imaginación moral no ha ido mucho más allá del ámbito que tenía en los tiempos de Adán y Eva. Las responsabilidades que estamos dispuestos a asumir no se han aventurado tan lejos como la influencia que nuestra conducta diaria ejerce sobre las vidas de personas cada vez más lejanas.

El "proceso de globalización" significa que esa red de dependencias llega a los más remotos recovecos del planeta, pero poco más (por lo menos hasta ahora). Sería muy prematuro hablar de una sociedad global o de una cultura global, y más aún de una política o un derecho globales. ¿Está surgiendo un sistema social global en ese extremo último del proceso de globalización? Si tal sistema existe, no se parece a los sistemas sociales que solemos considerar normativos. Solíamos pensar en los sistemas sociales como una totalidad que coordinaba y adaptaba todos los aspectos de la existencia humana a través de mecanismos económicos, poder político y patrones culturales. Hoy día, sin embargo, aquello que se solía coordinar al mismo nivel y dentro de una misma totalidad ha sido separado y situado en niveles radicalmente diferentes.

La globalidad del capital, las finanzas y el comercio (esas fuerzas decisivas para la libertad de elección y la eficacia de las acciones humanas) no se ha emparejado a una escala semejante con los recursos que la humanidad ha desarrollado para controlar las fuerzas que rigen las vidas humanas. Y lo que es más importante, la globalidad no se ha igualado con una escala global semejante de control democrático.

De hecho podemos decir que el poder ha "volado" de las instituciones desarrolladas a lo largo de la historia que, en los Estados nacionales modernos, solían ejercer un control democrático sobre los usos y abusos del poder. La globalización en su forma actual significa pérdida de poder de los Estados nacionales y (por el momento) ausencia de cualquier sustituto eficaz.

Ya en otra ocasión, los actores económicos efectuaron una desaparición a lo Houdini semejante a ésta, aunque, evidentemente, a una escala mucho más modesta que la que se ha efectuado en nuestra era de la globalización. Max Weber, uno de los analistas más agudos de la lógica de la historia moderna (o de la falta de ella), observó que lo que marcaba el nacimiento del nuevo capitalismo era la separación de la actividad económica de lo doméstico (donde lo "doméstico" significaba la densa red de derechos y obligaciones mutuas mantenidos por las comunidades rurales y urbanas, por las parroquias o los gremios de artesanos, en las que familias y vecinos habían estado estrechamente envueltos). Con esta separación (mejor llamarla "secesión" en honor de la antigua alegoría de Menenio Agripa), el mundo de los negocios se aventuró por una auténtica tierra fronteriza, una tierra de nadie libre de problemas morales y restricciones legales y pronta a ser subordinada al código de conducta propio de la empresa.

Como ya sabemos, esta extraterritorialidad sin precedentes de la actividad económica condujo en su momento a un espectacular avance de la capacidad industrial y al acrecimiento de la riqueza. También sabemos que, durante casi la totalidad del siglo XIX, esa misma extraterritorialidad redundó en mucha miseria humana, en pobreza y en una casi inconcebible polarización de las oportunidades y niveles de vida de la humanidad.

Por último, también sabemos que los Estados modernos entonces emergentes reclamaron esa tierra de nadie que el mundo de los negocios consideraba de su exclusiva propiedad. Los organismos que establecen las normas del comportamiento de los Estados invadieron aquel espacio hasta que, no sin vencer una resistencia feroz, se lo anexionaron y colonizaron, llenando así el vacío ético y mitigando sus consecuencias más desagradables para la vida de sus súbditos o ciudadanos.

La globalización se puede considerar como la "segunda secesión". Una vez más, el mundo económico se ha escapado del confinamiento doméstico, aunque esta vez el hogar que se ha abandonado es el moderno "hogar imaginario", circunscrito y protegido por los poderes económicos, militares y culturales del Estado nacional, a los que se suma la soberanía política. De nuevo, el ámbito económico ha conseguido un "territorio extraterritorial", un espacio propio por el que pueden andar, tumbando con toda libertad los pequeños obstáculos levantados por las débiles potencias de lo local y tratando de sortear los obstáculos construidos por los fuertes, y donde pueden perseguir sus fines pasando por alto o dando de lado el resto de los fines, a los que consideran irrelevantes económicamente y por tanto ilegítimos. Y una vez más observamos unos efectos sociales semejantes a aquellos que, en tiempos de la primera secesión, tropezaron con la repulsa social, sólo que esta vez a una escala inmensamente mayor, global (como la segunda secesión en sí).

Hace casi dos siglos, en plena primera secesión, Karl Marx acusó de "utópicos" a aquellos que abogaban por una sociedad mejor, más equitativa y justa y que tenían la esperanza de lograrlo deteniendo en seco el avance del capitalismo y volviendo al punto de partida, al mundo pre-moderno del ámbito doméstico y los talleres familiares.

No había vuelta atrás, insistía Marx; y, al menos en ese punto, la historia le dio la razón. Cualquier tipo de justicia y de equidad susceptible de arraigar hoy día tiene que partir del punto en que unas transformaciones irreversibles han llevado ya a la condición humana.

Una vuelta atrás de la globalización de la dependencia humana, del alcance global de la tecnología y de las actividades económicas es imprevisible con toda seguridad. Respuestas como "pongamos las carretas en círculo" o "volvamos a las tiendas de campaña tribales" (nacionales, comunitarias) no servirán. No se trata de cómo remontar el río de la historia, sino de cómo luchar contra su contaminación y canalizar sus aguas para lograr una distribución más equitativa de los beneficios que comporta.

Y otro punto que es necesario recordar: sea cual fuere la forma que adopte el control global sobre las fuerzas globales, no puede ser una copia ampliada de las instituciones democráticas desarrolladas en los dos primeros siglos de la historia contemporánea. Dichas instituciones se hicieron a la medida del Estado nacional, que entonces era la 'totalidad social', de mayor tamaño y que más abarcaba y son particularmente poco aptas para ser ampliadas hasta una escala global.

El Estado nacional no era tampoco una hipérbole de los mecanismos comunitarios sino que, por el contrario, era el producto final de formas radicalmente nuevas de convivencia humana, así como de solidaridad social. Tampoco fue el resultado de una negociación y un consenso logrado tras una dura negociación entre comunidades locales. El Estado nacional, que finalmente proporcionó la tan buscada respuesta a los desafíos de la "primera secesión", surgió a pesar de los obstinados defensores de las tradiciones comunitarias y mediante la progresiva erosión de las ya escuálidas y menguadas soberanías locales.

Toda respuesta eficaz a la globalización no puede más que ser global. Y el destino de semejante respuesta global depende de que surja y arraigue un ámbito político global (entendido como algo distinto de "internacional" o, para ser más precisos, interestatal). Es este ámbito político el que hoy brilla por su ausencia.

Los actuales actores mundiales se niegan abiertamente a establecer dicho ámbito. Sus adversarios visibles, entrenados en el viejo y cada día menos eficaz arte de la diplomacia entre Estados, parecen carecer de la habilidad necesaria y de los recursos indispensables para lograrlo. Se necesitan nuevas fuerzas para establecer y dar vigor a un foro auténticamente mundial adecuado a la era de la globalización, y éstas sólo se harán valer evitando a unos y otros.

Ésta parece ser la única certeza. El resto depende de nuestra inventiva compartida y de la práctica política del tanteo. Al fin y al cabo, muy pocos pensadores, si es que hubo alguno, fueron capaces de prever en plena primera secesión la forma que adoptaría finalmente la operación encaminada a reparar los daños. De lo que sí estaban seguros era de que una operación de esa clase era la necesidad más imperiosa de su tiempo. Todos estamos en deuda con ellos por esa clarividencia.

(Publicado originalmente em El País, 20 de julho de 2001)


El concepto de "cine nacional" en la era de la comunicación
Fecé Gómez, Josep Lluís



El principal objetivo de esta comunicación es el de plantear algunas cuestiones relacionadas con el concepto de «cine nacional», una categoría considerada «evidente» -en algunos casos, «indiscutible»- en no pocas historias. Antes de comenzar, quisiera hacer unas precisiones. En primer lugar, no intento negar la existencia de unas cinematografías nacionales, ni de defender una especie de hermandad cinematográfica universal que compartiría un amor sin fisuras por el séptimo arte, las grandes obras y por los grandes maestros. Tampoco es mi intención cuestionar una supuesta realidad o un objeto, sino un concepto que, en mi opinión, se entiende de forma «estática» y no como una categoría en constante cambio, como lugar o espacio en el que intervienen (siempre de forma conflictiva) aspectos económicos, tecnológicos, políticos e ideológicos. En segundo lugar, quisiera señalar que a partir de estos breves apuntes no se pretende revisar toda una tradición historiográfica que ha organizado sus trabajos alrededor de esa categoría, sino de examinarla a la luz de recientes transformaciones tecnológicas, económicas, sociales y culturales que afectan al cine, hoy una realidad mediática. Por último, destacar que mis reflexiones se alejan del enfoque «estético» (las escuelas, los autores...) para acercarse a una concepción del cine como «práctica cultural» y giran alrededor de eso que, de una forma general, se denomina «recepción».

1. Texto y contexto

De forma general, podemos decir que una cinematografía nacional está compuesta por un amplio conjunto de filmes en los cuales pueden observarse elementos temáticos y formales susceptibles de configurar un «modelo» del filme español, portugués o norteamericano. Es decir, el investigador encuentra una cierta coherencia entre un amplio número de filmes y asume que esa coherencia tiene relación con la producción y recepción de esos filmes dentro de los límites de un estado-nación o de una nación sin estado. Dicho de otro modo, el investigador relaciona una coherencia -que podríamos definir como «textual»- con otra -que podríamos denominar «contextual»- de tipo socio-político o socio-cultural. Si la relación texto/contexto está ampliamente aceptada en los estudios sobre los medios de comunicación y la cultura de masas -desde la(s) semiótica(s) hasta los Cultural Studies británicos, pasando por la(s) sociología(s)- su presencia en el terreno de las investigaciones cinematográficas es, a mi juicio, escasa. Grosso modo, tomar esa relación como principio metodológico significa pasar del estudio de las obras al de la relación que éstas mantienen con los grupos sociales y con otros objetos culturales. Se trata, fundamentalmente, de estudiar las lógicas de consumo cinematográfico.

2. Contexto

Si quisiéramos estudiar la producción reciente (pongamos la de los últimos veinte años) de una cinematografía nacional, deberíamos tener en cuenta alguno de estos aspectos. En primer lugar, las características de las empresas de producción, hoy grandes complejos multimedia que invierten grandes sumas de dinero en productos «polivalentes» (en la actualidad, además de un film, se comercializa un disco de éxito, un libro, un programa de televisión, en definitiva, se intenta construir un acontecimiento mediático) y que necesitan una audiencia más amplia que la de un territorio nacional. En segundo, unos cambios tecnológicos que no sólo afectan a la producción de imágenes, sino también a su distribución. Las tecnologías de la comunicación han creado una nueva geografía simbólica gracias a su capacidad de transgredir fronteras y territorios y que implican un complejo proceso de desterritorialización y reterritorialización.

A primera vista, no parece que esas cuestiones tengan mucho que ver con el «objeto cine», sobre todo si lo consideramos (lícitamente) como un conjunto de obras, autores y escuelas en los que dejan algunas huellas los acontecimientos históricos. Sin embargo, las cosas pueden plantearse de distinto modo si concebimos el «objeto cine» como práctica cultural. Pensemos, por ejemplo, en el nuevo cinéfilo; un espectador-consumidor que acude a un centro comercial, ve un filme (por lo general, norteamericano), tiene la posibilidad de comprar una serie de productos relacionados con él (discos, camisetas, libros) y más tarde, ve en la televisión (quizás en alguna cadena con alguna participación en la producción) un debate sobre el tema planteado por dicho filme. Y todas esas actividades pueden realizarse al mismo tiempo y en distintos lugares del planeta...

3. Sobre las identidades culturales

Hemos de suponer que una cinematografía nacional es algo más que un conjunto de productos «fabricados» en un territorio; los filmes también pueden considerarse como índices de las representaciones sociales o como lugares en los que se manifiesta (aunque sea a través de la ficción) la denominada identidad cultural de un grupo, pueblo o nación. Nos hallamos pues ante un complejo conflicto; puesto que la expresión de una identidad cultural no siempre es compatible con unas realidades económicas y tecnológicas que exigen vastas audiencias. Conflicto a menudo presente en los discursos de las instituciones públicas y privadas que por un lado defienden y exaltan las peculiaridades de sus productos y que por otro, necesitan unos mercados más amplios, unas audiencias que quizás no estén familiarizadas con esas peculiaridades. Es lo que ocurre, por ejemplo, en los discursos (sobre todo institucionales) sobre algo en el fondo tan vago como el «cine europeo» y en general, como eso que denominamos «cultura europea».

Ante esas nuevas realidades, parece cuando menos discutible considerar las identidades culturales como un objeto dado, estable, en el que las nuevas tecnologías, la economía y las prácticas culturales producirían unos determinados efectos. Por el contrario, desde hace algunos años las identidades culturales son, en buena parte, un producto de esas prácticas y de esas tecnologías. Ello significa considerarlas como algo en constante reformulación, como lugares en los que se producen una serie de conflictos y en los que se dan cita intereses contradictorios. Además, una identidad cultural no puede ser definida únicamente por sus supuestas especificidades, sino también por su relación (y diferenciación), con otras identidades culturales. Dicho de otro modo, deberíamos estudiar cómo nos definimos a nosotros mismos a través de nuestras diferencias con el Otro. Consecuentemente, deberíamos preguntarnos qué o quién es ese Otro y qué imagen construimos de él. Pensemos, por ejemplo, la supuesta Identidad Europea definida en muchas ocasiones en relación a las imágenes de «Norteamérica».

Otro problema relacionado con la identidad cultural y también con el trabajo histórico es el de la «tradición». Al igual que sucede con el concepto de «identidad cultural», el de «tradición» puede utilizarse como un conjunto de creencias y prácticas aceptadas pasivamente por una comunidad; la tradición es más bien una cuestión política, un discurso en el que podemos ver cómo una serie de instituciones seleccionan (o, en ocasiones, imponen) unos determinados valores del pasado para actualizarlos en una serie de prácticas contemporáneas. En ese sentido, unos objetos culturales (un cine nacional, por ejemplo) pueden (re)presentar una particular versión de una memoria colectiva y de ese modo, «producir» un determinado sentido de la identidad cultural y nacional.

4. Problemas e inquietudes

Estas esquemáticas consideraciones relacionadas con el concepto de «cine nacional» deberían inscribirse en un trabajo y un debate conceptual y metodológico cuyos límites exceden, evidentemente, los del marco de una comunicación. Me contentaré pues con enumerar algunas cuestiones. En primer lugar, debe admitirse que concebir el cine como «práctica cultural» y estudiar las «lógicas del consumo» implica aceptar ciertas indefiniciones metodológicas. Desde ese punto de vista, un trabajo sobre una cinematografía nacional puede abarcar dos grandes aspectos; por un lado podemos estudiar, a través de un conjunto de films, cómo una sociedad se representa a sí misma y por otro, analizar las relaciones entre esa cinematografía y otros territorios culturales, no sólo con la televisión, sino también la industria discográfica, con el consumo, etc. y las dinámicas culturales que se establecen entre esas películas y su público. En ambos casos, nos hallamos en un territorio interdisciplinario que rebasa ampliamente no sólo el de la historia, sino también el de la teoría del cine, al menos tal y como las conocemos.

En segundo lugar ¿hasta qué punto podemos seguir hablando de «cine» sin tener en cuenta los profundos cambios que, a partir de los años 60, se operan en los hábitos de consumo? Si admitimos (y me parece que hay suficientes razones para ello) que el cine es hoy una realidad mediática, deberemos asumir que su estudio se acerca al de otros medios de comunicación. De ese modo, conceptos o problemas como la «globalización» afectan al cine, aunque sólo sea a la utilización del concepto «cine nacional». En mi opinión, el investigador debería asumir que hoy trabaja con realidades y conceptos inestables, algo que implica aceptar indefiniciones, contradicciones y constantes reformulaciones de su trabajo y de sus métodos. Puede evitarlo refugiándose en supuestas realidades inamovibles, en conceptos o categorías indiscutibles, aunque el precio que pague por ello sea darle definitivamente la espalda a su objeto de estudio.




por que ler os clássicos, de italo calvino

Comecemos com algumas propostas de definição.

Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: "Estou relendo... " e nunca "Estou lendo...".

Isso acontece pelo menos com aquelas pessoas que se consideram "grandes leitores"; não vale para a juventude, idade em que o encontro com o mundo e com os clássicos como parte do mundo vale exatamente enquanto primeiro encontro.

O prefixo reiterativo antes do verbo ler pode ser uma pequena hipocrisia por parte dos que se envergonham de admitir não ter lido um livro famoso. Para tranqüilizá-los, bastará observar que, por maiores que possam ser as leituras "de formação" de um indivíduo, resta sempre um número enorme de obras que ele não leu. Quem leu tudo de Heródoto e de Tucídides levante a mão. E de Saint-Simon? E do cardeal de Retz? E também os grandes ciclos romanescos do Oitocentos são mais citados do que lidos. Na França, se começa a ler Balzac na escola, e pelo número de edições em circulação, se diria que continuam a lê-lo mesmo depois. Mas na Itália, se fosse feita uma pesquisa, temo que Balzac apareceria nos últimos lugares. Os apaixonados por Dickens na Itália constituem uma restrita elite de pessoas que, quando se encontram, logo começam a falar de episódios e personagens como se fossem de amigos comuns. Faz alguns anos, Michel Butor, lecionando nos Estados Unidos, cansado de ouvir perguntas sobre Emile Zola, que jamais lera, decidiu ler todo o ciclo dos Rougon-Macquart. Descobriu que era totalmente diverso do que pensava: uma fabulosa genealogia mitológica e cosmogônica, que descreveu num belíssimo ensaio. Isso confirma que ler pela primeira vez um grande livro na idade madura é um prazer extraordinário: diferente (mas não se pode dizer maior ou menor) se comparado a uma leitura da juventude. A juventude comunica ao ato de ler como a qualquer outra experiência um sabor e uma importância particulares; ao passo que na maturidade apreciam-se (deveriam ser apreciados) muitos detalhes, níveis e significados a mais. Podemos tentar então esta outra fórmula de definição:

Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los.

De fato, as leituras da juventude podem ser pouco profícuas pela impaciência, distração, inexperiência das instruções para o uso, inexperiência da vida. Podem ser (talvez ao mesmo tempo) formativas no sentido de que dão uma forma às experiências futuras, fornecendo modelos, recipientes, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza: todas, coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro lido na juventude. Relendo o livro na idade madura, acontece reencontrar aquelas constantes que já fazem parte de nossos mecanismos interiores e cuja origem havíamos esquecido. Existe uma força particular da obra que consegue fazer-se esquecer enquanto tal, mas que deixa sua semente. A definição que dela podemos dar então será:

Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual.

Por isso, deveria existir um tempo na vida adulta dedicado revisitar as leituras mais importantes da juventude. Se os livros permaneceram os mesmos (mas também eles mudam, à luz de uma perspectiva histórica diferente), nós com certeza mudamos, e o encontro é um acontecimento totalmente novo. Portanto, usar o verbo ler ou o verbo reler não tem muita importância. De fato, poderíamos dizer:

Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira.

Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura.

A definição 4 pode ser considerada corolário desta:

Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.

Ao passo que a definição 5 remete para uma formulação mais explicativa, como:

Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes).

Isso vale tanto para os clássicos antigos quanto para os modernos. Se leio a Odisséia, leio o texto de Homero, mas não posso esquecer tudo aquilo que as aventuras de Ulisses passaram a significar durante os séculos e não posso deixar de perguntar-me se tais significados estavam implícitos no texto ou se são incrustações, deformações ou dilatações. Lendo Kafka, não posso deixar de comprovar ou de rechaçar a legitimidade do adjetivo kafkiano, que costumamos ouvir a cada quinze minutos, aplicado dentro e fora de contexto. Se leio Pais e filhos de Turgueniev ou Os possuídos de Dostoievski não posso deixar de pensar em como essas personagens continuaram a reencarnar-se até nossos dias.

A leitura de um clássico deve oferecer-nos alguma surpresa em relação à imagem que dele tínhamos. Por isso, nunca será demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possível bibliografia crítica, comentários, interpretações. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário. Existe uma inversão de valores muito difundida segundo a qual a introdução, o instrumental crítico, a bibliografia são usados como cortina de fumaça para esconder aquilo que o texto tem a dizer e que só pode dizer se o deixarmos falar sem intermediários que pretendam saber mais do que ele. Podemos concluir que:

Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para Ionge.

O clássico não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos; às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos (ou acreditávamos saber) mas desconhecíamos que ele o dissera primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de maneira particular). E mesmo esta é uma surpresa que dá muita satisfação, como sempre dá a descoberta de uma origem, de uma relação, de uma pertinência. De tudo isso poderíamos derivar uma definição do tipo:

Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.

Naturalmente isso ocorre quando um clássico "funciona" como tal, isto é, estabelece uma relação pessoal com quem o lê. Se a centelha não se dá, nada feito: os clássicos não são lidos por dever ou por respeito mas só por amor. Exceto na escola: a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número de clássicos dentre os quais (ou em relação aos quais) você poderá depois reconhecer os "seus" clássicos. A escola é obrigada a dar-lhe instrumentos para efetuar uma opção: mas as escolhas que contam são aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola.

É só nas leituras desinteressadas que pode acontecer deparar-se com aquele que se torna o "seu" livro. Conheço um excelente historiador da arte, homem de inúmeras leituras e que, dentre todos os livros, concentrou sua preferência mais profunda no Documentos de Pickwick e a propósito de tudo cita passagens provocantes do livro de Dickens e associa cada fato da vida com episódios pickwickianos. Pouco a pouco ele próprio, o universo, a verdadeira filosofia tomaram a forma do Documento de Pickwick numa identificação absoluta. Por esta via, chegamos a uma idéia de clássico muito elevada e exigente:

Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs.

Com esta definição nos aproximamos da idéia de livro total, como sonhava Mallarmé. Mas um clássico pode estabelecer uma relação igualmente forte de oposição, de antítese. Tudo aquilo que Jean Jacques Rousseau pensa e faz me agrada, mas tudo me inspira um irresistível desejo de contradizê-lo, de criticá-lo, de brigar com ele. Aí pesa a sua antipatia particular num plano temperamental, mas por isso seria melhor que o deixasse de lado; contudo não posso deixar de incluí-lo entre os meus autores. Direi portanto:

O "seu" clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele.

Creio não ter necessidade de justificar-me se uso o termo clássico sem fazer distinções de antiguidade, de estilo, de autoridade. (Para a história de todas essas acepções do termo, consulte-se o exaustivo verbete "Clássico" de Franco Fortini na Enciclopédia Einaudi, vol. III). Aquilo que distingue o clássico no discurso que estou fazendo talvez seja só um efeito de ressonância que vale tanto para uma obra antiga quanto para uma moderna mas já com um lugar próprio numa continuidade cultural. Poderíamos dizer:

Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia.

A esta altura, não posso mais adiar o problema decisivo de como relacionar a leitura dos clássicos com todas as outras leituras que não sejam clássicas. Problema que se articula com perguntas como: "Por que ler os clássicos em vez de concentrar-nos em leituras que nos façam entender mais a fundo o nosso tempo?" e "Onde encontrar o tempo e a comodidade da mente para ler clássicos, esmagados que somos pela avalanche de papel impresso da atualidade?". É claro que se pode formular a hipótese de uma pessoa feliz que dedique o "tempo-leitura" de seus dias exclusivamente a ler Lucrécio, Luciano, Montaigne, Erasmo, Quevedo, Marlowe, o Discours de la méthode, Wilhelm Meister, Coleridge, Ruskin, Proust e Valéry, com algumas divagações para Murasaki ou para as sagas islandesas. Tudo isso sem ter de fazer resenhas do último livro lançado nem publicações para o concurso de cátedra e nem trabalhos editoriais sob contrato com prazos impossíveis. Essa pessoa bem-aventurada, para manter sua dieta sem nenhuma contaminação, deveria abster-se de ler os jornais, não se deixar tentar nunca pelo último romance nem pela última pesquisa sociológica. Seria preciso verificar quanto um rigor semelhante poderia ser justo e profícuo. O dia de hoje pode ser banal e mortificante, mas é sempre um ponto em que nos situamos para olhar para a frente ou para trás. Para poder ler os clássicos, temos de definir "de onde" eles estão sendo lidos, caso contrário tanto o livro quanto o leitor se perdem numa nuvem atemporal. Assim, o rendimento máximo da leitura dos clássicos advém para aquele que sabe alterná-la com a leitura de atualidades numa sábia dosagem. E isso não presume necessariamente uma equilibrada calma interior: pode ser também o fruto de um nervosismo impaciente, de uma insatisfação trepidante.

Talvez o ideal fosse captar a atualidade como o rumor do lado de fora da janela, que nos adverte dos engarrafamentos do trânsito e das mudanças do tempo, enquanto acompanhamos o discurso dos clássicos, que soa claro e articulado no interior da casa. Mas já é suficiente que a maioria perceba a presença dos clássicos como um reboar distante, fora do espaço invadido pelas atualidades como pela televisão a todo volume. Acrescentemos então:

É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo.

É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.

Resta o fato de que ler os clássicos parece estar em contradição com nosso ritmo de vida, que não conhece os tempos longos, o respiro do otium humanista; e também em contradição com o ecletismo da nossa cultura, que jamais saberia redigir um catálogo do classicismo que nos interessa.

Eram as condições que se realizavam plenamente para Leopardi, dada a sua vida no solar paterno, o culto da antiguidade grega e latina e a formidável biblioteca doada pelo pai Monaldo, incluindo a literatura italiana completa, mais a francesa, com exclusão dos romances e em geral das novidades editoriais, relegadas no máximo a um papel secundário, para conforto da irmã ("o teu Stendhal", escrevia a Paolina). Mesmo suas enormes curiosidades científicas e históricas, Giacomo as satisfazia com textos que não eram nunca demasiado up-to-date: os costumes dos pássaros de Buffon, as múmias de Federico Ruysch em Fontenelle, a viagem de Colombo em Robertson. Hoje, uma educação clássica como a do jovem Leopardi é impensável, e sobretudo a biblioteca do conde Monaldo explodiu.

Os velhos títulos foram dizimados, mas os novos se multiplicaram, proliferando em todas as literaturas e culturas modernas. Só nos resta inventar para cada um de nós uma biblioteca ideal de nossos clássicos; e diria que ela deveria incluir uma metade de livros que já lemos e que contaram para nós, e outra de livros que pretendemos ler e pressupomos possam vir a contar. Separando uma seção a ser preenchida pelas surpresas, as descobertas ocasionais.

Verifico que Leopardi é o único nome da literatura italiana que citei. Efeito da explosão da biblioteca. Agora deveria reescrever todo o artigo, deixando bem claro que os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos e por isso os italianos são indispensáveis justamente para serem confrontados com os estrangeiros, e os estrangeiros são indispensáveis exatamente para serem confrontados com os italianos. Depois deveria reescrevê-lo ainda uma vez para que não se pense que os clássicos devem ser lidos porque "servem" para qualquer coisa. A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos.

E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, citarei Cioran (não um clássico, pelo menos por enquanto, mas um pensador contemporâneo que só agora começa a ser traduzido na Itália): "Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. "Para que lhe servirá?", perguntaram-lhe. "Para aprender esta ária antes de morrer".