sábado, janeiro 07, 2006

Escuta Zé Ninguem!

(...) Nunca te ouvi queixar: 'Voces promovem-me a futuro senhor de mim proprio e do meu mundo, mas nao me dizem como faze-lo e nao me apontam erros no que penso e faco.' Deixas que os homens no poder o assumam em teu nome. Mas tu mesmo nada dizes. Conferes aos homens que detem o poder, quando nao o conferes a importantes mal intencionados, mais poder ainda para te representarem. E so demasiado tarde reconheces que te enganaram uma vez mais. Mas eu entendo-te. Vezes sem conta te vi nu, psiquica e fisicamante nu, sem mascara, sem opcao, sem voto, sem aquilo que faz de ti 'membro do Povo'. Nu como um recem-nascido ou um general em cuecas. Ouvi entao os teus prantos e lamurias, ouvi-te os apelos e esperancas, os teus amores e desditas. Conheco-te e entendo-te. E vou dizer-te quem es, Ze Ninguem, porque acredito na grandeza do teu futuro, que sem duvida te pertencera. Por isso mesmo, antes de tudo o mais, olha para ti. Ve-te como realmente es. Ouve o que nenhum dos teus chefes ou representantes se atreve a dizer-te: Es o 'homem medio', o 'homem comum'. repara bem no significado destas palavras: 'medio' e 'comum'. Nao fujas. Tem animo e contempla-te. 'Que direito tem este tipo de dizer-me o que quer que seja?' Leio esta pergunta nos teus olhos amedrontados. Ouco-a na sua impertinencia, Ze Ninguem. tens medo de olhar para ti proprio, tens medo da critica, tal como tens medo do poder que te prometeram e que nao saberias usar. Nao te atreves a pensar que poderias ser diferente: Livre em vez de deprimido, directo em vez de cauteloso, amando as claras e nao mais como um ladrao na noite. Tu mesmo te desprezas, Ze Ninguem. (...)

Wilhelm Reich

sexta-feira, janeiro 06, 2006

Elogio ao Amor

'Ha coisas que nao sao para se perceberem. Esta e uma delas. Tenho uma coisa para dizer e nao sei como hei-de dize-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensivel. A culpa e minha. O que for incompreensivel nao e mesmo para se perceber. Nao e por falta de clareza. Serei muito claro. Eu proprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dize-lo. O que quero e fazer o elogio do amor puro. Parece-me que ja ninguým se apaixona de verdade. Ja ninguem quer viver um amor impossivel. Ja ninguem aceita amar sem uma razao. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questao de pratica. Porque da jeito. Porque sao colegas e estao ali mesmo ao lado. Porque se dao bem e nao se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque e mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calcas e das contas da lavandaria. Hoje em dia as pessoas fazem contratos pre-nupciais, discutem tudo de antemao, fazem planos e a minima merdinha entram logo em 'dialogo'. O amor passou a ser passivel de ser combinado. Os amantes tornaram-se socios. Reunem-se, discutem problemas, tomam decisoes. O amor transformou-se numa variante psico-socio-bio-ecologica de camaradagem. A paixao, que devia ser desmedida, e na medida do possivel. O amor tornou-se uma questao pratica. O resultado e que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas. Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estupido, do amor doente, do unico amor verdadeiro que ha, estou farto de conversas, farto de compreensoes, farto de conveniencias de servico. Nunca vi namorados tao embrutecidos, tao cobardes e tao comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, sao uma raca detelefoneiros e capangas de cantina, malta do "ta bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcancadores de compromissos, bananoides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Ja ninguem se apaixona? Ja ninguem aceita a paixao pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilibrio, o medo, o custo, o amor, a doenca que e como um cancro a comer-nos o coracao e que nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor e uma coisa, a vida e outra. O amor nao e para ser uma ajudinha. Nao e para ser o alivio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "da la um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporanea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, ja nao se ve romance, gritaria, maluquice, facada, abracos, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor e amor. E essa beleza. E esse perigo. O nosso amor nao e para nos compreender, nao e para nos ajudar, nao e para nos fazer felizes. Tanto pode como nao pode. Tanto faz. E uma questao de azar. O nosso amor nao e para nos amar, para nos levar de repente ao ceu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor e uma coisa, a vida e outra. A vida as vezes mata o amor. A "vidinha" e uma convivencia assassina. O amor puro nao e um meio, nao e um fim, nao e um principio, nao e um destino. O amor puro e uma condicao. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor nao se percebe. Nao e para perceber. O amor e um estado de quem se sente. O amor e a nossa alma. E a nossa alma a desatar. A desatar a correr atras do que nao sabe, nao apanha, nao larga, nao compreende. O amor e uma verdade. E por isso que a ilusao e necessaria. A ilusao e bonita, nao faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor e uma coisa, a vida e outra. A realidade pode matar, o amor e mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coracao apanha-se para sempre. Ama-se alguem. Por muito longe, por muito dificil, por muito desesperadamente. O coracao guarda o que se nos escapa das maos. E durante o dia e durante a vida, quando nao esta la quem se ama, nao e ela que nos acompanha - e o nosso amor, o amor que se lhe tem. Nao e para perceber. E sinal de amor puro nao se perceber, amar e nao se ter, querer e nao guardar a esperanca, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Nao se pode ceder. Nao se pode resistir. A vida e uma coisa, o amor e outra. A vida dura a Vida inteira, o amor nao. So um mundo de amor pode durar a vida inteira. E vale-la tambem.'

Miguel Esteves Cardoso