sábado, novembro 19, 2005

Viver todos os dias cansa

«O que é ser-se português? Não sou sociologo, mas deve ser uma pessoa não achar nada estranho que haja uma serra que se chama estrela - digo isto porque conheci uma noite uma americana que julgava que a África começava a seguir ao tejo e se podia assim ver do Terreiro do Paço, o que aliás não achei necessário corrigir. Portugueses são pessoas que, ao verem jogar o Eusebio, em directo ou indirectamente, sentem vagamente que é da familia, cultivam a tradição de cuspir para o chão enquanto passeiam, enfim, coisas assim que se têm em comum. E, claro, coisas muito importantes, como falarem uma mesma língua. Mas é precisamente aqui que as coisas se começam a complicar. É que o português que eu ouvi falar no Porto é sintacticamente mais elaborado e as palavras mais apropriadas do que o português que se fala em Lisboa. Quero dizer, falam muito melhor. Reparei nisto quando, no banho turco, fiquei muito mais tempo do que é meu costume porque, o vapor tapando-me a vista, me deixei fascinar pelo som e pela maneira de falar. Diziam as coisas em cheio, se assim me posso expressar, o que pressupõe qualidades morais como a coragem e a frontalidade, ou, para ser claro, não falam em português como nós, falam português e pronto.»

Pedro Paixão

quarta-feira, novembro 16, 2005

Corpo Diplomatico Portuguez

Os actos e relações politicas e diplomaticas de Portugal com as diversas potencias do Mundo

Instruções a D. Miguel de Portugal, Bispo de Lamego, Embaixador a Roma

Comentário à Carta:

A instabilidade de D. João IV no trono português deve ser entendida como uma marca da restauração portuguesa, tendo em vista que o movimento não ocorreu de modo uniforme e não teve total apoio da população. Desta forma, havia a necessidade de que o rei recém entronado conquistasse a fidelidade de seus súditos. A questão principal era em relação à legitimidade da revolta de 1640, tanto para os portugueses como para com as demais cortes européias, pois o Duque de Bragança fora considerado rebelde e os portugueses traidores por D. Filipe IV. Neste contexto, ganham grande expressão os diplomatas portugueses que tinham como objetivo garantir um espaço para o reino dentro das relações internacionais. Estes buscavam primeiramente reestruturar o Império Português, para então o adaptar às novas relações com as potências européias emergentes. Constituíam-se num grupo de profissionais que possuíam uma certa autonomia, defendendo idéias que muitas vezes não concordavam com as de seus governantes. Não propunham, no entanto, soluções isoladas, preocupando-se com o espaço português como um todo. Neste sentido, explica-se a carta de 7 de Abril a D. Miguel, Bispo de Lamego, Embaixador a Roma e todas as instruções que nela constam. Os cautelosos passos e o receio de uma espanha ainda muito presente, está patente em todas as linhas desta carta.
D. João IV pretende que D. Miguel faça chegar a sua palavra ao Pápa, explicando-lhe de que forma a independencia de Portugal teria sido perdida e de que forma a pretende restituir de forma pacifica. Não se esquecendo de pedir a benção do Santo Papá sob testemunho do Tribunal do Santo Oficio, para que se mostre aos Reis de Castela que o território é definitivamente Português. Em troca D. João IV compromete-se a dilatar a fé católica em todos os cantos do mundo e a reduzir, desta forma, as nações basbaras que não tinham conhecimento da palavra do santo evangelho.
Entretanto, apesar de todo o esforço do reino, a Espanha não aceitara a separação de Portugal, mantendo ativos órgãos que regulamentavam a política portuguesa, além de garantir o apoio de grande parte da nobreza lusitana, que permanecera na Corte de Madrid após a proclamação de D. João IV.
Uma das dificuldades da nova dinastia para se estabelecer definitivamente era o grande número de grupos que compunham a sociedade lusitana no período, e as diferentes maneiras de se comportarem frente à recém entronada monarquia, além do fato de existirem interesses diversos e contraditórios no que diz respeito à restauração portuguesa.
Desta forma o “povo”, de modo geral, seria mais anti espanhol que a fidalguia, tendo em vista que a nobreza portuguesa tinha, em sua maioria, relações com o monarca, o que gerava desconfianças dos populares em relação a ela. Além disso, a crise no fornecimento de trigo e o excesso fiscal provocado pelos crescentes conflitos espanhóis, devido sobretudo à Guerra dos Trinta Anos, gerara um sentimento de rebeldia entre a população. Já a burguesia, que nunca fora poderosa, devido sobretudo ao pequeno desenvolvimento urbano e ao status de Estado comerciante que possuía Portugal, tendera a aderir, porém à distância e sem ter grandes participações, a restauração portuguesa, à medida que seus lucros com a União Ibérica iriam se tornando cada vez mais escassos, principalmente após a diminuição da produção de prata americana, o que dificultaria o comércio com as Índias Orientais, principal fonte de lucro para os comerciantes portugueses da época. Já os Cristãos Novos, que se configuravam como grandes mercadores portugueses, de início não demonstraram interesse pela restauração, devido tanto às perseguições inquisitoriais quanto ao medo do confisco de seus bens, gerando uma grande transferência de capitais para outros reinos europeus, principalmente os Países Baixos. Após a subida ao trono de D. João IV, no entanto, tornam-se um dos grandes financiadores do rei, mantendo a esperança de proteção de seus bens frente ao Santo Ofício.
Com a restauração, os destinos da monarquia passam a estar nas mãos dos nobres, que se afirmariam como uma elite nobiliárquica central, e não periférica.

Literatura y Ciencia ante la Inquisición Española

Trabalho sobre o livro
de
Ángel Alcalá

Ángel Alcalá pretende, com este livro, mostrar ao leitor, não só o que foi a Inquisição espanhola mas, acima de tudo, de que forma este tribunal actuava entranhando-se em todos os sectores de actividade. Sempre de forma imparcial, o autor vai-nos mostrando factos e estudos anteriormente realizados para que seja o leitor a tirar as suas próprias conclusões. De forma clarividente somos remetidos para uma viagem ao século de Ouro, onde a Inquisição se fazia sobressair de todas as formas.
Instituída em Espanha pelo Papa Sixto IV, a pedido dos Reis Católicos a 1 de Novembro de 1478 com a bula exigit sincerae devotionis affectus. Estendeu-se a vários países da Europa, mas em Espanha só a territórios da coroa de Aragão. A meio do século XV popularizou-se em toda Espanha pelo ódio aos judeus convertidos.
A nomeação dos Inquisidores era feita por um pontífice. O conselho da suprema inquisição funcionava como mais um conselho, os chamados de ministérios. A inquisição controlava toda a heresia da doutrina como a sua escrita, bem como todas as praticas intima da espiritualidade individual. Viajava e censurava as expressões dos escritores e científicos que ofendessem a ortodoxia estabelecida. A censura é a constante tentação de todo poder ansioso por defender-se dos inimigos.
Passaram quatro anos desde as primeiras denuncias até que Manrique lhes desse continuidade. Adriano fecha em Abril a proibição das obras de Lutero. Os alunbrados que ninguém havia impresso captaram a atenção do Santo Oficio, por tratar-se de uma seita laica, potencialmente incontrolável. A sua temporal coincidência com o Luteranismo e Erasmismo forçará a Inquisição a tê-los debaixo de olho.
Alumbradismo, Luteranismo e corrente pró-erasmiana foram a ponte entre a etapa institucional do Santo Oficio, centrada em processos contra judeus e mouros que se desenrolou com processos contra Luteranos e Cristãos novos suspeitos de desvio da ortodoxia. Os cristãos concretos que as comissões qualificadoras utilizavam para controlar os intelectuais só são conhecidos genericamente. A proibição de um determinado escrito dependia sempre do talento individual de cada censor.
Além da proibição total que não oferece duvidas foram também adoptados três métodos de censura pelos inquisidores. A mais frequente consistia em extrair do contexto uma ou outra frase sem ter em conta o género em que a obra se inseria ou a sua intenção, aparecendo com notas ofensivas de errónea escandalosa ou herética. Outro foi o expurgo, ou seja, permitia ler livros declarados bons, mas nos quais se haviam declarado frases e parágrafos suprimiveis com tinta grossa, arrancando mesmo algumas paginas consideráveis inaceitáveis. Um livro expurgado levava sempre à má reputação do autor, leitor e vendedor. Por fim, se o livro em questão fosse, por exemplo, de erudição clássica ou de conteúdo cientifico, a própria assinatura de um autor condenado tinha de constar na portada, dos escritos, de protestantes e suspeitos de outras heterodoxias, isto bastava para afastar possíveis leitores.
Uma pragmática ditada em Toledo em 1502 pelos reis católicos regulou pela primeira vez a concepção de licença para imprimir livros em Castela e vende-los no estrangeiro. A partir de 1554 uma pragmática de Filipe II em Valladolid ordena que esta actividade corresponda ao concelho de Castela, sancionando uma pratica que remonta a 1520. Por fim, foi ditada na mesma cidade, em 1558 por sua irmã, a princesa Joana, em nome do Rei divide a tarefa: Assina a esse conselho as licenças de impressão, mas ao Santo Oficio as de introduzir livros estrangeiros e submeter todos à proibição do seu conteúdo uma vez publicados. Estava-se a preparar o primeiro índice oficial da Inquisição, autorizado por Fernando de Valdês.
A historiografia da Inquisição só distingue os diversos delitos que processou, como o Judaísmo, o Maometismo, o Luteranismo, pseudo-misticismo, a bruxaria, a maçonaria, o liberalismo, para além de actos isolados de solicitação no confessionário, como bigamia, blasfémia, frases teologicamente insustentáveis (a mais frequente era a ideia de que o acto sexual entre solteiros não era pecado), entre outras. Sem prescindir de tão útil catalogação parece ser mais importante recordar as etapas culturais cujo desenrolar em Espanha coincide com a vigência da Inquisição.
Quatro vozes se ergueram contra estas praticas. Nebrija, Servet, Vergara e Vives, quatro humanistas que tinham em comum uma atitude aberta, anti escolástica e anti barbara de aplicar técnicas humanistas para melhor compreensão do texto e da mensagem tanto clássica como evangélica. Os quatro foram objecto de atenção e perseguição pessoal por parte do Sto. Oficio.
Nebrija (1441-1522) comparou-se com vários modelos italianos: Petrarca, iniciador do humanismo Hispânico, Valla e Ângelo Poliziano. Quando voltou a Espanha, trazia dez anos de estudos em Bolonha de 1460 até 1470, mudaram a atitude de Nebrija, de um humanismo textual a um humanismo evangélico e um semi-alumbrista. Também não se pode dizer que em 1495 a Rainha lhe tenha dito que mais à frente queria “consumir todo o resto da sua vida nas letras sagradas”. Nebrija trazia de Itália o germe de tudo o que vinha a ser. Mas tal como Valla, alterava as suas obrigações profissionais com os seus esforços vocacionais “in sacris litteris” quando lhe era possível.
Nebrija passou a ensinar em Salamanca de 73 a 86 e redigiu comentários de cinquenta passagens da escritura que no Inverno de 1505 tem listas para publicação. Como Melchor Cano e o seu partido não poderiam tolerar que “mujercillas e idiotas” falem de coisas de Deus, os Inquisidores não aceitam que “não sabendo a sagrada escritura, falem do que não conhecem”. Nebrija trazia assim a linha divisória do problema e a Inquisição não está disposta a admitir a autonomia técnica da ciência filosófica.
Miguel Servet (1511-1553) teve a proibição absoluta das suas obras. Originalmente Serveto, desde o Índex de Fernando Valdês em diante, não se deve esquecer que contra a sua pessoa se iniciou a Inquisição de Saragoça “in absentia” a instancias da suprema mas 20 anos antes. Na realidade a sua proibição é a mais antiga de qualquer autor espanhol. Mesmo depois de decretada a sua captura pela Inquisição, Servet atreveu-se a enviar um exemplar do seu escandaloso livro ao arcebispo de Saragoça. Algumas cartas posteriores a estes acontecimentos, ordenam que o seu próprio irmão Juan vá à Alemanha e França e o traía. Uma carta da suprema de Saragoça a 13 de Março insiste em que se informe o paradeiro de Miguel, outra de 3 de Maio acusa por fim o recebimento da “deposição de Juan Serveto” e repreende o tribunal de Aragão por sua negligencia ao identificar um acusado. Estas palavras são as últimas que um documento inquisitorial espanhol menciona Servet.
Francisco de Vergara, consumado helenista alcalaíno (1492-1557), canónico de Toledo, brilhante escritor de latim e castelhano, pensador elogiado depois de Melchor cano. Verdade que ele mesmo se meteu no ouvido inquisitorial por defender e pressionar a defesa do seu hermanastro Bernardino de Tovar. Igualmente violou o secreto e outras normas de estilo do Santo Oficio. Varias vezes se cruzou com Tovar, nas barbas dos Inquisidores. O processo de Vergara é uma antecipação e ensaio do de Carranza e frei Luís. Tinham à frente o mesmo inquisidor, Fernando Valdês. Valdês e Vergara tinham iniciado a carreira ao mesmo tempo. Foram juntos em comissão oficial a Flandres para informar os diocesanos do indigno sucessor. Vergara só se livrou da morte graças a alguns votos favoráveis de qualificadores amigos. Teve no entanto de pagar 1500 ducados ao Santo Oficio e sofrer a humilhação de sair em Auto público a 21 de Dezembro de 35. Passou mais um ano e meio de reclusão. Quatro anos de carcel e ainda sobreviveu outros 20.
Juan Luís Vives (1492-1541), desde o seu retiro das bruxas em uma das muitas cartas a Erasmo, este entendeu o alcance do que se passava em Espanha. Bastava-lhe comparar a sua representação intelectual com a intelectual e religiosa praticada ao mesmo tempo por Henrique VIII. Doze anos antes, em 1522 ouviu falar de Vergara ter ocupado o lugar de Nebrija à morte deste. Vives respondeu com evasivas, esquecendo as numerosas viagens a Inglaterra cruzando o canal e que lhe havia chamado Erasmo. Pôs no Índice os seus comentários aos XXII livros de “la ciudad de Dios” de Santo Agostinho. Um estudo sobre as relações entre Erasmo e Vives baseado no seu epistolário, demonstra que começam a enfiar-se desde que o valenciano começou a aprisionar desde 22 manifestando a sua posição ao luteranismo.
Na perspectiva do autor pode-se comprovar que o erasmismo em terreno intelectual da época tentou desempenhar um papel análogo ao do alumbradismo no campo da espiritualidade e exactamente durante os mesmos anos. Ambos foram o oportuno revulsivo das inteligências e das interioridades das almas, até que a inquisição suspeitou da sua ortodoxia por conivência com as aguas do Luteranismo, passando desde então a ser para ela o “terminus a quo” do conformismo imposto pelo controle inquisitorial. Uma vez adoptada essa atitude de vigilância e repulsa, se estenderá até encontrar toda a actividade intelectual que se mostre a fim da atitude critica manifestada pelo erasmismo nos diversos campos da sua curiosidade humanística.
Em consequência, o Índice de Valdês reconhece e amplia as ideias de Erasmo ensaiadas em 1527 em Valladolid, impostas pelo decreto de Setembro de 37 e formuladas logo no primeiro Índice de 1551, copiado da Universidade de Lavoina. Valdês enumera como proibidas todas as suas obras traduzidas até 1559 e algumas em Latim, os mesmos que mais claramente estarão nos seus Índices proibitivos, Quiroga, Sandoval e Zapata. O de Sandoval traz uma aclaração bem eloquente, que o de Marín repete em 1707. O nome Erasmo desaparece da pluma dos escritores espanhóis e pouco a pouco também a influência do seu pensamento. A obsessão inquisitorial contra Erasmo como venero da heterodoxia irá em aumento, paradoxalmente, à medida que o XVI se acerca ao fim. Os títulos das suas obras latinas proibidas por Quiroga ocupam duas densas páginas, mas os seus expurgos, referidos à Ed. de Froben e Episcopius muitas mais, da 81 à 114. Anos mais tarde, aquando de Erasmo em Espanha conservam-se os Índices posteriores referindo-se sempre à mesma edição, o que demonstra que o Santo Oficio ou não conhecia outras ou meramente repetia os expurgos.
No caso dos Alumbrados, o Santo Oficio não só perseguiu pessoalmente como procurou sujar a memória dos escritos medievais que podiam ser fonte da sua inspiração. Algo parecido se observa a respeito do erasmismo. Vários factores ocorrem desde meados de 1529 para impulsionar o Santo Oficio a intensificar o seu controle intelectual que se fazia respirar nos ares do inconformismo erasmista. A reunião de Valladolid no Verão de 27 não tinha passado de alerta.
A aresta pré-erasmista de sátira anticlerical impele que com o tempo se chegue à veda inquisitorial de maestros clássicos e renascentistas da sátira e epigrama e sim não de toda, pois por ser tão abundante tinha resultado excessivo, de boa parte de criticas que os qualificadores não podiam encarar com demasiado gozo.
Em outra ordem de obras já Valdês havia incluído no seu Índex o “Manipulus curatorum” em romance ou em Latim, do turolense Guido de Montroche, escrito em 1320. O Santo Oficio corrigiu-a antes de permitir a impressão de Salamanca do ano de 74; em consequência, Quiroga e Sandoval proíbem os exemplares de edições anteriores. Vercial acreditando em Valderas, que estudava em Salamanca em 1392 e viveu pelo menos até 1436, é também autor de um “Confesional” muito divulgado por muito tempo e do “livro dos exemplos por a.b.c.”, paradoxalmente não tocado pelo Santo Oficio.
Teólogos e Canonistas foram o braço que o Santo Oficio necessitou para ir diferenciando atitudes espirituais, até desabrochar lentamente, nunca sem fricções e para sempre no que se veio a tornar. A nitidez com que hoje nos podemos referir à experiência mística e usar uma terminologia clara e ortodoxamente aceitável deve-se a um grande esforço da Inquisição e não menos ao espiritual, cujos escritos espirituais são para ela magistrais.
A maior parte das obras censuradas nos primeiros Índices estão em Latim especialmente temas de teologia, reforma, filosofia, ciencia, ensaios e ainda comércio epistolar internacional e por conseguinte diplomacia. Não há duvida que o mais molesto do alumbradismo para a Inquisição e para a igreja era que difundindo entre minorias de gente autodidacta e quase sempre laica, ainda que relativamente culta se arrogavam esta total independência desses órgãos oficiais de ortodoxia: bastava-lhes «um sentido experimental que se prometiam a si mesmos da fá do amor de Deus» e a sua própria interpretação da bíblia.
O Santo Oficio seguiu sempre suspeitando até ao final de expressões religiosamente intimistas, como a paz do coração, sofrimento interior, convite divino, união, núpcias divinas, arte de amor escondidamente, aniquilação, silencio interior, senda escondida, noite escura, puro amor, nudez, transformação em Deus e outras metáforas que se nos fizeram comuns.
Não foi fácil este controle, desde a sua acentuada mentalidade eclesiástica, adversa em principio a expressões de intimidades espiritual, devia esclarecer-se correntes de muitas diversas procedências e sentidos, reorientar a piedade tradicional despojando-a da superstição acumulada nos séculos medievais, mas em registar os movimentos espiritualistas e reformadores mais do que a ortodoxia tradicional podia permitir.
Há que interrogar quais eram os critérios escolhidos pela Inquisição para a sua actividade proibitiva ou expurgada. Os princípios concretos de proibição de todos estes Índices desde o de Quiroga imprimiam o prólogo. Frequentemente os censores tinham que invocar o pertinente em cada caso à hora de solicitar a Suprema, a atitude concreta que havia que tomar. Há também que assinalar o progressivo endurecimento da censura inquisitorial nesta matéria desde meados do século XVII. O Santo Oficio não encontra ocupação em causas dogmáticas e justifica a sua preferência centrando-se em assuntos como os que motivaram a sua fundação original., a sua crescente dureza com obras de passatempo. Foram mais obras de autores italianos e por conseguinte portugueses, franceses, alemães ainda que não muitos. Quem aborda a necessária tarefa de realizar um estudo total da fortuna da variada literatura estrangeira nas mãos do Santo Oficio espanhol entrará num campo praticamente em barbeito.
Devemos concentrar-nos também nos escritos de literatura criativa propriamente dita, valendo-nos da sua divisão nos géneros tradicionais de teatro, poesia e novela. Mas temos que fazer antes um par de esclarações. O primeiro género literário que não goza das simpatias sensoriais dos inquisidores é o teatro. O teatro renascentista vem a ser a primeira vitima literária da criva sensorial da Inquisição e até um ponto, realmente cruel. Tal atitude anti teatral manter-se-á com menor intensidade, frente à relevante criação teatral do século de ouro e se fará ostentosa ainda que se valendo das armas do Santo Oficio, na continua discussão que teólogos e moralistas alimentaram, sobra a licitude ou ilicitude do teatro, mas chegou ao paroxismo com inúmeras proibições de comédias e sainetes ao largo do século XVIII. Por outro lado, algumas obras teatrais escritas em XVI e XVII por autores como Belmonte Bermúdez, Jerónimo de Câncer, Gidínez, Pérez de Montalbán, Lope de Veja, entre outros foram condenados à extinção, não só a expurgo, nos três últimos Índices da Inquisição espanhola, os de Valhadolid/Marín (1707), Perez de Prado (1747) e Rubín de Ceballos (1790 e 1805). O trato inquisitorial à poesia do século de Ouro foi muito mais benigno que o concedido ao teatro e à novela. É compreensível, pela diversa natureza de ambos os géneros, minoritária aquela, não prestigiada pelo atractivo da plasticidade que ao teatro concedem a representação e a publicidade ou à novela, a criação de personagens e episódios que se impõe sobre os da realidade cotidiana. Como antes, basta a enumeração adereçada com notas, que eram mais extensas quando se tratava de autores conhecidos.
A utilização política de proibições inquisitoriais de narração de sucessos históricos, por muito subjectiva, e falsa que fosse, era adversa aos interesses e ao prestigio da monarquia, fica claramente evidenciada na dos famosos “ Pedazos de historia o relaciones” de António Pérez (1540-1611) por Sandoval. O seu processo pelo tribunal de Saragoça por ordem da Suprema, faz escapar das carceles de Madrid. De menor quantia são as proibições como a de “Tratado dos estados eclesiásticos e seculares” de Diogo de Saa. Dá a impressão de que o Santo Oficio aspira a canalizar a favor dos seus interesses o conhecimento da história e da metodologia do seu estudo. A revisão dos Índices arroja um chamativo número de livros de história proibidos ou expurgados.
O controle inquisitorial do pensamento filosófico começa com o primeiro Índice, o de Valdês, proibindo três livros de Dialéctica anti-aristotelica. Ao dispor de correspondente que por acaso justificaria a proibição, há supor que o motivo foi simplesmente esse, o mero acto de o ser. A intenção e o alcance da oposição inquisitorial aos novos métodos filosóficos em nenhum caso se comprova com maior claridade que em Francis Bacon Verulam (1561-1626), tão celebre pela sua tradição ao conde de Essex, seu protector, como por sido Conciller de Inglaterra e por suas fundamentais obras filosóficas. É a base de novos rombos do método empírico que, ao criticar, as abstracções lógicas medievais, tentava às vezes purificar as fantasias cabalísticas e alquimistas e instaurar no germe o método da ciência moderna. Os cortes da censura inquisitorial espanhola com os filósofos resultam apesar da sua escassez, extraordinariamente sintomáticos. Depois de feitos os Índices alcançaram de um modo ou de outro quase todos os intelectuais espanhóis que, segundo a velha terminologia adoptada, nas suas não muito brilhantes obras por Bonilla e San Martín e logo por Solana, não duvidam em chamar «homens de espírito critico ou independente», incluindo esta tendência platónica. O Santo Oficio actuava controlando o pensamento espanhol desde o seu alcance aristotélico. Não vale objectar que não condenavam obras nominalistas só por o ser, já que essa tendência era uma das da escolástica medieval sumariamente apreciada na época. Essa sua serração mental resultou definitivamente para o futuro da Filosofia e da Ciência no país. As ideias críticas dos nossos médicos filósofos, de alguns dos nossos humanistas e dos defensores dos novos métodos empíricos e os novos horizontes filosóficos abriram caminho fora de Espanha, fora do controle inquisitorial, e ali germinaram. O moderado pirronismo de Montaigne e Sanchez com essa sua atitude independente, havia tratado de apanhar as ideias e crenças medievais.
Não ficaria completa esta revisão ao controle inquisitorial da cultura espanhola se não se incluir um estudo, do que a inquisição exerceu directamente, aparte da repressão ambiental, não concretamente quantificável em datas sobre livros de científicos tanto nacionais como estrangeiros. Difícil de precisar resulta a delimitação exacta entre os seus aspectos propriamente científicos e eminentes, que haveria de depender da invenção do método apropriado. O renascimento, nisto das ciências o mesmo que em todos os outros campos, se caracterizou pela busca dos métodos apropriados que nas diversas parcelas do saber vinham a ser possível à eclosão da modernidade, baseada na técnica racional ao serviço da investigação livre da verdade. O renascimento foi uma época de ruptura dos velhos moldes para os novos espirituais e mentais que por vezes coincidiam com a volta às fontes, as convicções e convenções medievais, com as decisões religiosas e intelectuais que significou quebrar a unidade e a ortodoxia tradicionais. A perspectiva de a que os Inquisidores censuravam obras cientificas não era cientifica, é dizer que não proibiam a ciência por ser ciência e enquanto tal se não opinavam apresentavam dados, hipóteses ou tendências que não se enquadravam nas suas interpretações de que criavam dogma ou opinião teológica comum. O mecanismo sensor inquisitorial não só era desesperadamente lento, com o seguinte detrimento de estudiosos e livros como repleto de prejuízos cujo mantimento ao longo dos largos séculos verificou graves consequências indirectas para a actividade científica em Espanha. Foram publicadas por autores protestantes entre 1560 e 1630, etapa chave da transcendental revolução científica que possibilitou o desenvolvimento técnico e económico da Europa.
Não se pode deixar de chamar a atenção do estudioso que já o Índice de Valdês proibia uma “geographia universalis” por Henricum Basilea. Sandoval condena variados expurgos, às vezes abundantes e largos, muitos livros de importantes tratadistas raianos entre a alquimia supersticiosa e a emergente ciência. Assim, uns quantos do químico e médico de Jena, autor do primeiro texto de química moderna, Andrea Libavius que não lhe valeram ser um dos maiores adversários de Teofrasto Paracelso, discutido o visionário tanto em empresas semicientificas como de reforma religiosa. Muito mais interessam as intermináveis censuras às valiosas obras do mais importante humanista e naturalista suíço, fundador da zoologia moderna. A perspectiva que a Inquisição proibia obras deste tipo era quase sempre o temor a que o povo não muito culto ficasse aficionado a usos supersticiosos que acarretam a crença de que podiam torcer os desígnios divinos e dominar a responsabilidade do livre arbítrio pessoal. Posto isto, e claro revendo proibições que penetram em pena modernidade, incluindo obras de clérigos.
Já Valdês proíbe quem sabe só por ser anónimo uma “Annatomia” da que não se podem constatar datas a não ser que se trate da “Anatomia capitis humani et chiromantiae compendium” que atribui a um tal “Ciclitis”. Não é difícil identifica-lo, o medico e filosofo hermético bolonhês Bartolomeo della Casa (1467-1504) «Cocles» quem foi executado por Bentivoglio por Predecirle que morriria em exílio. Apareceu em Estrasburgo em 1533. Ambas as visões são o indício do que viria a ser a postura do Santo Oficio frente aos médicos. Vai-se opor sempre às aplicações extra científicas da medicina, especialmente como vimos as baseadas em pressupor crédula e excessiva influencia dos astros que determine a conduta assim como prever esta pela observação dos rasgos faciais ou a estrutura anatómica.
O pêndulo de obsessões inquisitoriais mudou radicalmente e, isso a redacção original da maior parte desses escritos em Latim era improvável. O conteúdo chegara directamente ao povo leigo, mais tentado às classes superiores a credulidades pseudo científicas, ainda o renascimento até meados de XVIII reserva surpresas sobre esta hipótese. O que mais chama atenção é que nem Tarragona na Idade Media nem a Suprema na Moderna condenam obra alguma de Arnaldo das muitas que tratam da escrita das intoleráveis imortalidades do clero, da queda da igreja desde a sua constantização ao principio do século IV do apocaliticismo e franciscano espiritualismo radical de arnau, do seu frontal ataque à teologia.
Essa mesma obsessão motivará a menção no Índice de “Curationum medicilium centuriae (Lyon, 1560 e 80) de Amato Lusitano. Ignorância seria pretender que a ciência espanhola se visse afectada de modo directo por estes e outros leves cortes inquisitoriais. Maior transcendência encerram os expurgos decretados em obras medias de quatro dos maiores médicos do século XVI: Huarte, Vallés, Laguna e “Doña Oliva”.
Nenhum índice proibiu nem expurgou a “Viagem à Turquia” que então não era atribuído a Laguna e que Bataillon e Abellan tinham comparado com a razão pelo erasmismo politico à dos “Diálogos” de Alfonso de Valdês. Mas bem podiam tê-lo proibido ou ao menos expurgado, segundo as circunstâncias dos tempos e sensibilidades dos qualificadores. A mesma pergunta pode-se fazer sobre “El crotalón”, de Cristóbal de Villalón, ou sobre os seus “Diálogos de las transformações de Pitágoras”.
Foi aceitável presentear o trato inquisitorial à literatura e cultura espanholas do século de Ouro, separadamente da atenção que prestou às do século XVIII e principios do XIX. Por banal que às vezes resultasse tomar as divisórias seculares como indícios de câmbios culturais, tal critério tenta classificar e homologar as mudanças sociais de um período concreto de desenvolvimento histórico. Ainda há nas últimas décadas de XVII, registos notáveis das reacções que cada ano estão a ser melhor estudadas. O acesso dos Borbons em 1700 marca um ponto fundamental que nenhuma historiografia pode desdenhar.
A aspiração a controlar a expressão livre do pensamento, tentação dos regimes absolutos de todos os tempos, ocasião propicia para realizar-se de modo visível e eficaz ao comprovar que a revolução em comunicação e troca de ideias iniciada a fins do século XV pelo aparecimento do livro impresso não alcançava só pessoas capazes de decifrar o signo escrito, senão através de massas facilmente maleáveis. A imprensa diária ou semanal tão popularizada desde meados de XVIII, logo sobrepôs a influencia cultural do livro a causa dos lentos, mas progressivos logros de alfabetização e do acesso massivo a meios baratos de informação que só em meados de XX foram por sua vez superados pelos electrónicos. É lógico que a Inquisição, continuando os seus esforços por controlar os nocivos efeitos destes meios de difusão de «novidades» actuará frente ao Jornalismo com muito mais força do que a praticada frente ao livro.
A historia da repressão da imprensa pelo já Moribundo Santo Oficio está por escrever. Parece que não há nenhum estudo especializado que mereça ser citado, sobre um tema tão importante como este. Só uma pesquisa detalhada pelas hemerotecas comprovará a motivação concreta e a eficácia de tal medida. Com ela se atraem todas as iras dos conservadores e protegidos oficiais como Forner, pela sua critica a todos os usos irracionais do governo e dos costumes.
A dupla dimensão do uso sensorio, ao serviço de uma determinada filosofia politica e da repressão de toda a critica à sua própria actuação foi determinando, por uma parte, a condenação sistemática de todas as pessoas, acto escrito e dito que se pode interpretar, claro que sempre pelo mesmo tribunal e sem apelação possível., por outro, a proibição ou ao menos o expurgo de obras de nível politico e jurídico inaceitáveis ao mesmo tribunal mas com prejuízos do mesmo tipo. Na breve revisão que o espaço permite, começaram por verdades antigas. Havia de se contar entre estas, Machiavel no Índice de Sandoval, assim como “De la republique” e outras obras de Bodin e de todo Justo Lipsio «até que se corrija».
No entanto, apesar de todo o controle, sempre correram ventos de liberdade ideológica. Apesar do entrave verificado na idade media e moderna a Inquisição acabou por ser abolida sendo vencida pelas suas próprias inseguranças e consevadorismo. Durante toda a história da humanidade se verificaram terrores de varias espécies, sempre que se aspirou o poder absoluto e este foi e sempre será, de uma forma ou de outra, a grande falha do ser humano. A aspiração pelo poder absoluto, a tentativa de controlar tudo e todos com a finalidade dos seus próprios objectivos. No entanto, tudo é cíclico e tudo se transforma. Apesar de todos os esforços, há uma coisa que ninguém consegue controlar, a mente humana. Esta sim controla-nos a todos e não há poder absoluto que a supere.

The Rhetorics of Life-Writing in Early Modern Europe

The Rhetorics of Life-Writing in Early Modern Europe
Of Biography from Cassandra Fedele to Louis XIV
Edited by Thomas F. Mayer and D. R. Wool
(estudo efectuado à primeira parte do livro - Cap. 1 ao 7)

Introdução

O ponto de partida deste livro é uma visão tradicional sobre o tema. No renascimento ocorreu «um desabrochar do indivíduo», o fenómeno da ascensão da biografia. Podemos encontrar biografias em todas as épocas e países, em muitas culturas e períodos. No entanto, quando lemos as biografias do Renascimento, ao invés de apenas as consultarmos em busca de informações ou citações, é difícil evitar uma sensação de desconforto gerado pela frustração das nossas expectativas. Essas biografias não são biografias no sentido que damos ao termo. Elas não discutem o desenvolvimento da personalidade, frequentemente ignoram a cronologia e em geral introduzem materiais aparentemente irrelevantes, dando uma impressão de ausência de forma. A vida de Dante por Boccaccio, por exemplo, foi criticada por um estudioso por estar «sub carregada de anedotas».
O que mais desconcerta o leitor é que esses textos estão repletos de ‘topoi’, anedotas sobre uma pessoa já contadas sobre outras pessoas. Niccolo Valori contou histórias sobre Lorenzo de Medici que no mínimo lembram Suetonio e as suas vidas dos Césares. Vasari conta histórias de pinturas de Piero della Francesca, por exemplo, equivocadamente tomadas como sendo reais, historias que são paráfrases de anedotas sobre antigos pintores gregos contadas por Plínio na sua ‘Historia Natural’.
Os historiadores ficam desconcertados quando manuseiam esses textos do passado, mas certamente deveriam evitar a tentação de desprezar os seus autores como incompetentes.
Desde Burckhardt, foram relativamente poucos os estudos feitos sobre a biografia renascentista, por oposição à autobiografia e isso, apesar do facto de certos textos de período, especialmente as colecções de biografias escritas por Bisticci e Giovio Varasi, terem sido usadas inumeráveis vezes como “fontes”. De qualquer forma, esse período histórico testemunhou um perceptível aumento do interesse tanto pela escrita quanto pela leitura de biografias, primeiro na Itália e depois noutros países.
A parte Italiana da história é mais conhecida. Tal como em outros campos do renascimento, o ponto de partida evidente é Petrarca, neste caso com a sua colecção de vidas de romanos famosos, ‘De viris illustribus’. Depois veio Boccaccio, com a sua colecção de vidas de mulheres famosas, ’De claris mulieribus’ e as vidas individuais de Dante e Petrarca. No século XV, as colecções de vidas incluíram ‘De viris illustribus’ de Fazio, ‘Vitae Pontificum’ de Platina, as memórias de Vespasiano sobre os homens famosos que conheceu e o livro de Foresi sobre mulheres famosas incluindo as humanistas Isotta Nogarola e Cassandra Fedele. Houve ainda biografias individuais: o humanista Leonardo Bruni escreveu sobre Platão e Giannozzo Manetti sobre Sócrates e Séneca. Entre os contemporâneos cujas vidas foram narradas individualmente figuram NicolauV, Alfonso de Aragão, Filippo Maria Visconti, Cosimo de Medici, o arquitecto Brumelleschi, o humanista Pomponio Leto e o ‘Condottiere’ Braccio da Montone.
Na Itália do século XVI, a biografia tornou-se um componente ainda mais importante da paisagem cultural. Hoje em dia, muitas pessoas lembram-se principalmente das vidas de artistas escritas por Vasari, mas os contemporâneos preferiam as biografias de soldados e sultães escritas por Giovio, seguidas das mulheres retratadas por Betussi, que actualizaram Boccaccio ao incluir Isabella D’este e Margarida de Navarra. As biografias individuais escritas nesse período incluem as de Corsi sobre Ficino, de Maquiavel sobre Castriccio Castracani, de Sansovino sobre Boccaccio, de Giovio sobre Leão X, de Condivi sobre Miguel Ângelo e de Pigna sobre Aristo. Por essa altura, o género biográfico estava crescendo rapidamente também fora da Itália.
Algumas Colecções de biografias tinham um objectivo didáctico: não apenas a vida dos santos, mas também as vidas de artistas por Varasi.
Embora algumas biografias tivessem organização cronológica, como no caso das vidas de More por Roper e de Calvino por Beza, a estrutura normal era temática ou tópica. Assim, o Dante de Boccaccio vai da vida para a poesia e da poesia para anedotas sobre a pessoa. A biografia de Erasmus por Beathus Rhenanus preocupa-se com a vida, a fama, os livros, a morte, a aparência e a personalidade do herói. A organização da ‘Vidas’ de Vasari segue um padrão geral de escrever origens, formação, trabalho, alunos, personalidade e epitáfio funerário.
Profecias sobre a grandeza futura do herói são um tema recorrente nas biografias renascentistas, tal como nas vidas dos santos medievais ou dos grandes homens da antiguidade. Plutarco citava o comentário de Cipião sobre a carreira futura de Mário e a visão que a ama de Cícero teve a respeito do futuro da criança. Da mesma forma, Boccaccio conta a história dos sonhos da mãe de Dante. A vida de More por Roper regista a referência do cardeal Morton a “essa criança” que “será um homem maravilhoso” Varasi cita o mestre de Miguel Ângelo, Domenico Ghirlandaio, que teria dito: “este menino sabe mais do que eu” e contam numa biografia atrás da outra, histórias de crianças que já mostravam sinais das suas futuras habilidades artísticas.
Como nos livros de chistes e nas novelas, há uma abundância de anedotas nas biografias escritas nessa época e o seu objectivo era revelar dados sobre a personalidade dos biógrafos. Roper conta a história de como More brincava diante da sua própria execusão. Varasi descreve como Donatello não se importava com dinheiro.
Nas ‘Vidas’ de Vasari o dialogo tem um papel importante, como no caso da famosa resposta de Miguel Ângelo à pergunta do Papa sobre quando ficaria pronta a Capela Sistina: “Quando eu puder”. A vida de More por Roper cita um bom número de frases, algumas das quais ficaram famosas, como a que disse para o seu executor: “Faça um bom serviço enviando-me lá para cima, pois na descida eu mesmo cuidarei de mim”. Em alguns casos, o diálogo é tão importante que se transforma no que podemos considerar um subgénero da biografia. Esse formato biográfico estava a poucos passos das colectâneas de frase ou das “conversas à mesa” de Lutero, ou dos textos estudiosos como J. J. Scaliger e John Selden.
Mas o que era exactamente a biografia? A esta altura é impossível uma abordagem filológica. No entanto, a ideia de uma visão “escrita” pode ser encontrada na Idade Média. O termo ‘biographia’ foi cunhado na Grécia no fim do período antigo. Além disso, falava-se em escrever “Vidas”. Na biografia de Alexandre O Grande, Plutarco faz uma distinção importante entre narrativa e escrever “vidas”, como ele mesmo fazia. Nas “vidas” havia espaço para abordar tanto a esfera privada quanto a pública, para descrever a personalidade individual através de pequenas pistas, “algo pequeno como uma frase ou um chiste”.
A distinção feita por Plutarco entre história e biografia foi frequentemente reafirmada nesse período. Em 1451, Bartolommeo Facio invocou a distinção de Plutarco numa carta em que descrevia o livro que estava a escrever sobre Alfonso de Aragão. Ela foi invocada novamente por Amyot no prefácio da sua tradução, explicando que a história se ocupa dos feitos dos homens, enquanto a função da biografia é esclarecer “leur dits et les moeurs”. Montaigne bateu na mesma tecla ao defender Plutarco contra os seus críticos, elogiando-o por se preocupar com a vida interior, ao invés de se voltar para o acidente dos eventos extremos. Montaigne também enfatizou a afirmação de Plutarco de que gestos aparentemente banais oferecem pistas sobre a personalidade.

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«Paolo Giovio and the rethoric of individuality»
T.C. Price Zimmermann

Na Primeira edição de “Lifes of illustrations Men” Giovio considera que a frase chave era ‘a somewhat free style’. Giovio era um revivalista de Plutarco, como extensão da tradição humanista renascentista e da biografia histórica. Nomeadamente na vida de Muzio Attendolo Sforza, Giovio indicou alguns dos maiores exemplos da tradição que ele seguia, nos seus escritos sobre papas - em vez que criar uma interpretação coerente de vidas individuais, baseadas em características internas - tal como o modelo Plutarco. A biografia humanista deixa assuntos definidos através do contexto onde estão inseridos, resumindo as características pessoais. Em Plutarco as características eram delineadas no início da biografia com sinais que nos eram dados e desenvolvidas através de assuntos amadurecidos posteriormente. Os humanistas viram a biografia como algo independente da história fazendo distinções entre elas mas, por outro lado, umbilicalmente ligadas.
As maiores biografias de Giovio podem-se considerar históricas quanto ao formato apresentado e todas elas apresentavam uma tradição humanista. Algumas delas não só continham informação que contribuía para a história da época como também eram baseadas em factos históricos. No entanto, todas continham demasiadas análises de carácter.
A implícita presunção do humanismo histórico teve identidade entre o texto e a vida, dado os biógrafos modernos considerarem a escrita de vidas uma ramificação da própria vida. O termo biografia veio a ser reconhecido tempos mais tarde com Mayer e Woolf.
A definição que Cícero deu a história em ‘De Oratore’ formou o paradigma da historiografia humanista, por não dizer só a verdade, mas toda a verdade. Esta foi parte da convenção formal para escritos históricos. A única diferença entre biografia histórica e mentira histórica consiste na ausência de obrigações do biógrafo, no sentido de dizer toda verdade e poder apagar material desfavorável. Esta teoria era criticada por alguns biógrafos.
O ponto mais marcante das biografias de Giovio foi a vida de Leo x. A extravagância, a crueldade, o engrandecimento da família e a infâmia dos seus amores por jovens nobres bem parecidos estão presentes nesta obra. A sua maior contribuição para a cultura renascentista está no seu museu e colecção de vidas.
Os critérios de selecção que Giovio utilizava, nomeadamente em ‘Elogia’eram um estudo neles próprios mas na generalidade reflectem a moral filosófica Ciceroniana e Senecaniana do humanismo tradicional. A versão original de ‘Elogia’ foi escrita à sua morte través de um retrato que ele possuía da vida. Entendida por Giovio como um retrato de palavras a juntar aos retratos acima delas na expectativa da plenitude da palavra se converter numa imagem completa da realidade individual.
A palavra final deve ser entregue à alternativa biografia popularizada por Giovio – A ‘Impresa’. Esta foi um fenómeno do renascimento e contém alguma cultura da filosofia de vida.

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Giorgio Vasari’s «Vita di Michelangelo Buonarroti» and the shade of Donatello
Barbara J. Watts

A vida do pintor, escultor e arquitecto teve a primeira publicação em 1550 e foi revista e republicada em 1568. Em ‘Vidas’, Vasari defende que a vida dos artistas é comparável com as próprias obras. Na segunda edição de ‘Vidas’ Vasari demonstra esta afirmação com imagens e palavras.
Vasari foi também influenciado pela teoria clássica das biografias. Ambas, tanto a organização do texto como a estrutura individual da vida sugerem uma cuidadosa mistura dos modelos contemporâneos e antigos. Tanto a biografia Plutarciana como a Varasiana juntam os assuntos pessoais e artísticos. Esta organização está estruturada não só nas características artísticas como na carreira profissional. Ainda como Plutarco ou mais recentemente Giovio, Varasi inclui anedotas que têm a ver com a personalidade. Enquanto escrevia ‘Vidas’, Varasi procurou o modelo medieval, da mesma forma que o clássico e o contemporâneo.
A vida de Michelangelo foi a última biografia da primeira edição de ‘Vidas’ para poder representar a história do progresso artístico. Nesta biografia era mencionado Donatello e a enorme divida que Michelangelo tem para com ele. Donatello está presente nos seus subtextos e Varasi continua-lhe a chamar a sombra de Michelangelo, o pai artístico. Quando a vida de Michelangelo é lida no contexto de Donatello, uma complexa dialéctica emerge no meio dos dois artistas que reaviva Donatello.
As analogias entre as vidas de Michelangelo e Donatello são muitas. Algumas reflectem a identidade artística, mas quando as duas vidas são entendidas desde a perspectiva das suas semelhanças, as diferenças entre eles tornam-se significativas.
A importância da imitação artística é um tema recorrente em Varasi. Este modelo normalmente segue a fórmula de uma longa tradição literária. Quando ele consequentemente foi para Florença e viu os trabalhos de Leonardo Da Vinci e Michelangelo, apercebeu-se das suas deficiências e estudou os trabalhos intensamente.
Varasi voltou-se depois para a escultura. Este descreve três esculturas de Michelangelo. Juntas criam uma imagem da sua singular habilidade e ambição. Ao princípio da biografia de Donatello, Varasi começou por apresenta-lo e depois passou a falar de toda a importância da sua escultura.
Uma vez apresentadas todas as diferenças no temperamento, Varasi caracteriza Donatello e Michelangelo como semelhantes na sua natureza, valores sociais bem como moralmente. Se Donatello personifica a generosidade, Michelangelo representa a encarnação de ‘Caritas’. Tal como Donatello, Michelangelo estendeu-se aos seus seguidores. Donatello deu o seu trabalho após a morte enquanto que Michelangelo o deu ainda em vida.
Finalmente Varasi afirmou o fantástico empenho de Michelangelo aquando da construção da basílica de S. Pedro. Donatello por sua vez fez um tabernáculo no velho S. Pedro.

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Burying the Brethren: Lutheran Funeral Sermons as Life-Writing
Robert Kolg


“Os exemplos têm mais poder do que as regras” – afirmação de Lorenz Mathesius. Segundo ele, os exemplos são importantes conselhos de ensinamentos para os valores cristãos e uma forma fundamental de comunicar algumas dessas verdades. Registar o passado como espelho da actividade de Deus – do conflito entre Deus e o Diabo, entre a verdade de Deus e a mentira de Satanás, foi importante para os seguidores de Luther e Melanchthon. A mensagem de Luther foca-se na acção de Deus e no controlo da acção humana. Alguns dos seus alunos compuseram pequenos, grandes momentos da vida de Luther. Esta composição foi realizada através de uma reflexão sobre os elementos da era Medieval e também da retórica da nova humanidade. Joachim Camerarius escreveu um texto humanista sobre a vida de Melanchthon, algo polémico que ia contra a linha de pensamento de Luther. Mas a par destes dois heróis de fé, German Lutheran celebra sermões e orações para funerais. Neste campo podemos observar a utilização de um elemento importante de Melanchthon, pioneiro no trabalho sobre retórica, a reunião de exemplos. Nos sermões dos funerais eles estão mais preocupados em transmitir e provocar um sentimento de pena, do que propriamente focar os detalhes da biografia da pessoa em causa. Nas mensagens dos funerais podemos encontrar temas em comum: a consolidação dos sobreviventes, concelhos sobre o modo de vida, a ressurreição como esperança para os crentes, entre outros. Também utilizam os sermões para construir uma imagem sobre o estrato social Evangélico e para demonstrar o uso correcto deste trabalho.
No fim do século XVI German Lutheran desenvolveu imagens sobre os ideais da vida Cristã nos seus sermões falando sobre os antigos santos e mártires da igreja.
As mensagens de Lutheran sobre os pastores normalmente focam o sofrimento por qual eles passaram em combater os inimigos no mundo de Deus e nas maneiras que cada Deus lhes transmitiu força para os manter nessas lutas; e faz o uso de textos bíblicos como espelho da vida. Neste caso, os textos bíblicos, servem para cultivar uma melhor compreensão sobre o trabalho clerical e a vida cristã. Com o objectivo de criar um sentimento de pena e percepção dos ouvintes os oradores construíram uma estrutura de trabalho para captarem a realidade do texto, de forma a educar melhor as pessoas na congregação. Melanchthon e Luther começaram a moldar o modo como endereçar o funeral para cultivar a pena. Das suas sugestões, os seus seguidores empregaram as ferramentas humanistas, para proclamar a providência de Deus e a prática humana de virtude e vocação como adicional do seu programa.

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“With friends like this…”: The biography of Philip Melanchthon by Joachim Camerarius
Timothy J. Wengert

Em 1566 Joachim Camerarius publicou, em Leipzig, a biografia de Philip Melanchthon, uma das mais influentes biografias deste tempo. Esta biografia influenciou os seus leitores uma vez que Camerarius a escreveu, descrevendo a vida de alguém com o estatuto de Melanchthon. Esta biografia retrata uma atmosfera de batalhas teológicas intra-luteranas e discussões sobre o papel de Melanchthon na teologia. Como este é o seu primeiro trabalho, continua a exercer uma tremenda influencia na sua vida.
Os biógrafos, que respeitaram quer o género retorico quer o lado polémico deste trabalho, aceitaram bem criticar o carácter de Melanchthon, retratado por Camerarius. Aliás, transformaram esta narrativa num mito. Apesar de haver a noção que as biografias do século XVI possuem um carácter retórico, o facto é que, mais tarde muitos historiadores ignoraram essa noção. Uma vez instalada uma ideia necessita de realização, não só por parte das fontes dos historiadores, mas também pela dependência dos historiadores pela narrativa e mito. Uma das partes mais fascinantes do mundo da história é o modo como cada geração adequa os textos e respectivos significados.
Depois de receber o seu mestrado em Artes, Camerarius foi para Wittenberg para estudar com o homem que viria a ser o seu correspondente e amigo para toda vida – Philip Melanchthon. Com a recomendação de Melanchthon, Camerarius tornou-se professor de grego e histórias latinas, no Gymnasium, em Nuremberg. As suas publicações incluíam trabalhos teológicos e ensaios pedagógicos. Estes trabalhos tipificam a escrita renascentista e a forma de retratar a vida. Aliás, imitam o próprio trabalho de Melanchthon. Este, por sua vez, era muito conhecido pela sua escrita fúnebre, utilizava muito textos em prosa e com categorias do humanismo germânico para descrever Lutero. Camerarius publicou um livro sobre retórica – ‘Elementa Rhetoricae’, onde a menção da morte de ocupa por vezes paginas inteiras. As principais categorias utilizadas por Camerarius são as ‘Pietas’, ‘Virtus’ e ‘Doctrina’.
Camerarius investigou a personalidade de Melanchthon com a convicção de que os tratos na infância determinam o nosso comportamento futuro. Tenta equilibrar os defeitos com as virtudes, embora as virtudes se destaquem sempre.
Para Camerarius a biografia de Melanchthon foi muito mais do que um exercício retórico, foi também um ataque polémico. Camerarius menciona alguns dos principais opositores de Melanchthon. Mathias Placius Illyricus foi o maior opositor. Camararius entende que algumas pessoas atacavam Melanchthon no sentido de manchar o nome dele e distorcerem o que ele dizia, Mas deixa claro que isto aconteceu devido à controvérsia do reino de Deus. Camararius usou a melhor arma para defender Melanchthon, a retórica. O ponto fulcral da narrativa de Camararius só se desvenda ao final, depois de descrever o péssimo comportamento dos opositores de Melanchthon.
Os historiadores Luteranos pegaram nas imagens polémicas e retóricas que Camerarius tinha utilizado para defender Melanchthon, e usaram-nas tornando-as em mitos. Transformaram a relação entre Lutero e Melanchthon em amizade. Alguns acreditaram de tal forma na amizade deles que construíram teorias para justificar as separações, as viagens e as tenções dentro da amizade. A biografia de Camerarius foi tão bem sucedida que passou a integrar parte de autores biográficos e textos sobre a Reforma Luterana.

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Manipulating Reputations: Sir Thomas More, Sir Thomas Elyot and the conclusion of William Roper’s «Life of Sir Thomas More, Knighte»
F. W. Conrad

Uma característica comum, em estudos recentes destas narrativas, tem sido demonstrada com um variante discernimento entre representações históricas contidas numa biografia particular o que pode ser independentemente aprendido sobre uma vida retratada.
William Roper celebrou ‘Life of Sir Thomas More, Knighte’, a biografia do seu famoso sogro era tradicionalmente considerada como justa e aparentemente memorável.
Mais recentemente, foi realçada a selectividade de Roper e a sua consciência artística. Com respeito pela biografia de Roper como histórica, as investigações do Sr. Goeffrey Elton, John Guy, Alistair Fox e Richar Marius expuseram dimensões de evidências vividas por More que não era facilmente reconciliável com a imagem projectada por Roper. Este compôs a sua narrativa biográfica com o texto que More sugere a Roper para investigar.
Um dos capítulos aborda duas questões: Primeiro estabelece que de acordo com os cânones da retórica, da biografia e da história renascentistas, foi considerado um tipo de prosa e os escritores de narrativas biográficas devem incorporar material imaginativo dentro do proprio texto. Em Segundo, identificam uma invenção histórica que constitua a conclusão de ‘The Life of Sir Thomas More, Knighte’ e demonstram que Roper deliberadamente a fabricou.
Por toda a arte e influência histórica, a veracidade de ‘The life of Sir Thomas More, especificamente no último paragrafo, é altamente suspeita.
Os biógrafos renascentistas e reformistas não aspiravam produzir uma verdade objectiva, mas sim escrever com suficiente veracidade que os leitores passam ver os seus trabalhos arranjados.
Ainda referente à conclusão de William Roper e de acordo com a introdução do texto, a conclusão é brilhante. Em vez de se comprometer num extenso relato dos detalhes sobre o tema John Fox, Roper optou por transpor os seus leitores para o campo de Charles V.
Desde que as cartas de Elyot foram escritas depois de More que a possibilidade de uma alegação que não pode ser esquecida. Para as propostas apresentadas pelo autor, o momento crucial em ‘Of the knowledge with Mareth a wise Man’ ocorreu no diálogo de Elyot, quando Aristippus desafiou o seu rival para explicar os benefícios apresentados. Acima de tudo ele quer saber porque que algumas doenças humanas podem ser consideradas providenciais.
Quando analisadas as biografias da idade media, é pior recordar o acesso à critica de Maquiavel ‘Vita di castruccio’ feita por Zanobi Buondelmonti, um dos trabalhos que lhe foi dedicado.

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Characterizations of the “Obscure Men” of cologne: A study in Pre-Reformation Collective Authorship
James V. Mehl


Na Primavera de 1518, Erasmus escreveu a um humanista seu amigo em Cologne, chamado Johannes Caesarius: O homem que inventou o título ‘Obscurum virorum’deu uma má volta à civilização: Se o título não tiver um conteúdo engraçado, aquelas letras vão continuar a ser lidas em todo lado tal como hoje são lidas em apoio aos dominicanos. Erasmus era constantemente perturbado, em cartas, pelos ataques pessoais ao seu próprio nome. Estas acabaram por ser denunciadas pelo próprio em 1517 alegando que o seu conteúdo satírico tinha mudado. A ideia, de coleccionar cartas satíricas, veio de alguns eventos a favor da causa de Reuchlin. Em Março de 1514 o Bispo de Speyer, que tinha sido responsabilizado pela Cúria Romana também tomou partido desta causa.
A começar em Petrarca, vários humanistas escreveram cartas neolatinas e também as editaram como colecções, no sentido de uma auto-expressão literária e uma forma de atingir a fama. O grande interesse nas cartas em neolatim pode ser traçado desde as ultimas três décadas do século XV. A popularidade e o grande uso de colecções de cartas, especialmente pelos humanistas, foram possíveis através da imprensa. A começar em 1472, verificaram-se numerosas impressões de colecções de cartas de autores da época, como Leonardo Bruni, Enea Sílvio Piccolomini, Giovanni Pico della Mirandola, Ângelo Poliziano e Robert Gaguin.
A evolução desta tendência dos humanistas de considerar as cartas como literatura é uma tendência que continua pelo século XVI onde as cartas se tornaram numa forma dominante.
Hutten reorientou a proposta de cartas satíricas para promover a reforma politica, religiosa e social da Alemanha. Mas em outras cartas, os termos ‘moderni, novi e antiqui’ implica que os humanistas são os autores modernos e os clássicos são os antigos. Os termos ‘obscurus’ e ‘clarus’ eram usados por Reuchlin e os seus seguidores para chamar a atenção para a sua superioridade intelectual em comparação com a estupidez e escuridão dos escolásticos.
A caracterização satirical e o humor burlesco das cartas apelavam a uma completa variedade de autores e leitores durante o século XVI e os séculos seguintes. O ‘Viri obscuri’ serviu de modelo para os ataques satíricos da literatura da nova reforma, como pode ser visto em ‘Eccius dedolatus’.
O sucesso literário de ‘Epistolae obscurorum virorum foi dúbio numa grande parte, a única mistura de elementos estilisticamente retóricos é o que os autores humanistas empregaram para encontrar as suas especificas sátiras e polémicas opiniões no contexto da controvérsia de Reuchlin, mas eles também seleccionaram uma das mais populares formas durante o século XVI – A colecção de cartas impressas – como veículo para as sátiras.

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Cassandra Fedele’s Epistolae (1488 – 1521): Biography as
Ef-facement
Diana Robin


Para começar a autora quer mostrar que existe uma distância significativa entre a sua maneira de pensar em relação às biografias e os outros autores do livro, os quais introduzem uma dicotomia entre vida e texto.
A documentação sobre Cassandra Fedele é dispersa. Há alguns dados sobre o sítio onde viveu, uma cópia provavelmente em suas mãos, mas não há nenhum documento sobre o seu nascimento ou casamento. Em 1558 quase não haviam factos sobre a vida de Fedele. Supostamente ela nasceu em 1465 em Veneza, mas alguma documentação afirma que a data do seu nascimento foi em 1456. Respectivamente o seu contemporâneo Baldesar Castiglione defende que ela veio com a sua família da corte mas o que os Fedele realmente eram, continua a ser um mistério. Aos seus 20 anos Fedele representou-se a si própria nas suas cartas com o objectivo de apelar para a atenção da nobreza e da realeza. Ela recebeu convites de leitura por parte de Marco Barbarigo, da Rainha Isabel e do Rei Fernando de Espanha.
No último quarto do século XV em Itália, algumas mulheres juntaram-se ao grupo de defensoras do humanismo. Quase todas as mulheres que se tornaram activas como humanistas eram membros de quatro famílias nobres o que era no renascimento o centro da literatura e da actividade artística.
O que é muito diferente nos livros de cartas de mulheres humanistas em relação a Fedele – ‘Epistolae’ – é o estilo latino e a sua construção, ambos, nas suas cartas e nos seus admiradores nota-se que não é feminino nem masculino o sentido convencional, ainda que o sentido feminino lhe desse leitoras, no entanto este era saturado com a sexualidade e preconceitos em relação ao género. A conexão entre escrita e sexo era um costume usado desde a antiguidade da poesia latina desde o primeiro século até ao renascimento.
Outro ponto significativo para as mulheres encontrado pelos escritores no renascimento, de Boccaccio para Castiglione, é a insuficiência física do corpo feminino. A doença, a falta de força e a robustez define a voz feminina, o que acentua uma marca deficitária para as mulheres em relação ao sexo como castradora.
O terceiro maior tema emerge nas cartas de Fedele em relação à ambiguidade da sexualidade e confusão em relação ao seu género. Como a autora sugere antes, escrever e feminilidade não era considerada compatível no renascimento. Era Fedele um homem ou uma mulher? Numa carta do duque de Milão, ela própria sugere que certamente Venetians a enviaram porque ela é «um novo homem». O termo romano para homens proeminentes.
Se pudermos generalizar as representações da pessoa Cassandra Fedele no seu ‘Epistolae’, uma autobiografia de uma mulher humanista pode ser privativo. Pode ser acordado com a prescrição de Castiglione e a descrição de homem.

Teatro e Literatura na Sociedade Barroca

O Teatro Barroco desde a história Social
A literatura espanhola desde o fim do sec. XVI até à segunda metade do sec. XVII apresenta um aspecto interessante de observação da sociedade. Não se pode ver esta literatura como "clássica" mas sim como "comédia" Barroca, imagem fiel da sociedade.
O que nós percebemos é que o teatro do sec. XVII se revela como um produto literário condicionado pela base social e esta é a questão que nos interessa. O teatro espanhol, sobretudo depois da revolução Lopesca aparece como uma manifestação de grande propaganda social, destinada a fortalecer uma sociedade repleta de interesses e valores na imagem dos homens e do mundo que os rodeia.
Ao chegar ao último quarto do sec. XVI começam a aparecer alguns locais como Madrid e Londres para levar a cabo representações teatrais. Algo que traz a influencia da antiguidade, mais uma que o humanismo traz consigo.
Não podemos pensar que no desenrolar literário à comédia correspondia a mesma influência do classicismo e que a imitação do teatro dos clássicos gregos e latinos dava lugar ao surgimento do teatro moderno. É necessário recorrer a outras razões para explicar que antes de terminar o sec. XVI, sobre as influencias classissistas e italianas, se produzia em Espanha o fenómeno da aparição dos temas da história nacional, o conteúdo épico do "romanceiro", a exaltação dos valores dos espanhóis e a variedade de situações, tempos, lugares, entre outros, que vão caracterizar a comédia espanhola. Tudo isto é impossível entender, se não tivermos em conta a função social que deriva o seu carácter.
A nível económico pode-se considerar que a Espanha está no seu auge pré-capitalista do sec. XVI, o que explica que na mentalidade dos espanhóis se valorize os modernos, algum progressismo fundado na visão da marcha da história como um avanço do presente.
Das mesmas circunstâncias e mentalidades depende o desenrolar da comédia espanhola com os seus temas actuais e nacionais. Por outro lado, esse modernismo trazia objectivos de restauração tradicional.
O teatro espanhol sem deixar de assumir uma herança culta do renascimento, postula uma preferência pelo presente. Justificando-se como uma obra dos modernos para os modernos. Nacionaliza-se e faz-se valer como nascido da natureza e gosto dos espanhóis. Isto leva a que se representem temas da actualidade. Tais são os aspectos da revolução de Lope de Vega.
Mas não são só as características que aparecem (algumas em França e Itália) respondendo a meras tendências da evolução literária. Se estas aparecem como significados sociais também aparecem com fins sociais a cumprir.
Se o teatro espanhol aparece com estas características deve-se aos objectos de propaganda que se comprometeu cumprir. Se os produtos da cultura do Barroco, não só em Espanha como em França e outros países, coincidem com algumas dessas características como por ex. a sua inclinação modernista – isto deve-se a que a cultura do barroco em todas as suas manifestações – no teatro, na pintura, como na política está condicionada pelos objectivos propagandistas que lhe são próprios.
Numa outra obra de Maravall, o autor faz observar que os escritores barrocos acudiam a técnicas de captação extra racional para imprimir nas mentes certas crenças. (Daí a utilização de emblemas e outros elementos plásticos).
Foi Aragon o 1º a utilizar a palavra propaganda para certos aspectos do barroco. Noutras ocasiões tentou falar do barroco como o sistemático emprego dessas coisas como a primeira cultura de massas.
Finalmente e de forma muito especial, no teatro – leva-se a cabo um grande esforço por controlar as opiniões e desenrolar uma ampla actividade de propaganda.
Se a comédia, bem como toda a arte barroca se esforça por fazer obra "moderna" é porque o que se pretende alcançar são os presentes, os homens cujos interesses se orientam na sua base social, a cultura barroca.

Morel disse uma vez de Lope – a quem a comédia alcança o seu maior significado – que não se podia afirmar que o seu teatro tenha sido educador do Povo. Certamente, não o educou, mas contribuiu para o moderar. Não realizou um trabalho educativo, desenvolvendo-o intelectualmente e moralmente, mas contribuiu exercendo sobre ele uma enérgica atracção.
O teatro espanhol tem pouco valor pedagógico, à diferença do francês e, a comédia carece de exemplaridade. Os que na época contemplaram o teatro do ponto de vista ético perderam a sua função e faziam espectáculos censuráveis.
As representações do teatro francês e Italiano até 1600 são dirigidas a um público escolar e culto, na linha do humanismo académico e classicista. As do teatro espanhol, por outro lado, dirigiam-se a massas que formam a opinião pública nas sociedades e nos sistemas tradicionais de crenças.
Ortega, ao cair como tantos outros escritores na tentação de comparar o teatro francês ao espanhol, advertia que aquela era uma arte de aristocracias e esta, uma arte popular. De tal forma que o primeiro procura fazer-nos apreciar os perfis psicológicos de figuras exemplares e o segundo tende a sacudir emotivamente uma massa sem distinção.
No entanto, não se pode dizer que o teatro espanhol seja uma arte popular, mas que se destina ao povo, apesar de não ser uma arte feita pelo povo e muito menos uma arte que se orienta pelos interesses dos mesmos. O teatro espanhol impõe a pressão de um sistema de poder e consequentemente uma estratificação e hierarquia de grupos, sobre um povo que, em virtude do desenvolvimento da sua vida durante secs. Anteriores, saía dos quadros tradicionais da ordem social ou pelo menos parecia amenizar seriamente com eles.
No sec. XV e começo de XVI dá-se uma fase de dispersão, fase que termina na segunda metade do sec. XVI com uma reacção que tende à formação de novas concentrações.
Nas cortes de XVI aparecem queixas devido a comportamentos anti tradicionais de classes populares, desde jornaleiros a mercadores - o mau estar frente à sociedade espanhola que empurra tantos emigrantes para a América. As casas de testemunhos acham importante que se remedeie essa situação social com novos afortunados e poderosos.
Aparecem então grupos urbanos contra este movimento de concentração, que significa mais do que se supunha no sec. XVI. Sente-se então a necessidade de superar esta tenção, em benefício dos proprietários, isto é, da monarquia absoluta. A esta circunstância vem ligada a comédia barroca.
Sendo o teatro espanhol um instrumento político e social, não corresponde a uma ética e são poucas as vezes que se ocupa de temas religiosos.
A igreja interessou-se também por esta arma de polémica e propaganda – teatro – e há um teatro religioso, de seu nome – autos – alguns deles comédias religiosas.
Lope ocupa-se em muitas das suas obras de paixões humanas, de choques sociais, problemas do mundo e só de vez em quando, em pequenas proporções, de temas religiosos, incluindo hagiografias, muitas delas puramente políticas.
Em França, Corneille e Molière, qualquer que sejam as suas diferenças a respeito da concepção de uma ética social e pessoal, são moralistas. Os espanhóis não, não por falta de interesse moral, como por ex. tantos escritores jesuítas, mas porque o teatro se orientava por outros aspectos da vida comum.
È curioso advertir a ausência de sátira no teatro – justamente no âmbito da literatura que se produz casos como "El de Quevado". Sátira social que Molière cultiva precisamente a falta na comédia, que nos oferece mais do que algumas burlas sem pretensão a sátira nenhuma.
No caso de Ruiz de Alcarón que alguns acreditam ver carregado de moralidade e política, todo o conteúdo da sua obra é inócuo, tópico e generalista de forma a não se comprometerem nenhuma crítica significativa.
Os espanhóis implantaram o teatro, um instrumento popular eficaz para socializar um sistema de convenções sobre o qual se estimou que havia de estar apoiada a ordem vigente social do País, ordem que havia de conservar um conteúdo ético.
Os que escrevem para o teatro e consequentemente para o povo não fazem questão deste último, porque para eles a autoridade política, sustentada pela autoridade eclesiástica – a realeza e a inquisição – garantia a validez moral desse sistema de convenções e mantém a sua vigência sobre a sociedade.
Talvez por ausência de dimensão ética, pode-se dizer, referindo-se a Lope, que na sua obra há situações dramáticas, mas não há drama íntimo.
Claro que ao percorrer esse território, o teatro espanhol aproximava-se da sua raiz «antiga» ou «clássica», muito mais do que se propunha. Classicamente, o próprio da tragédia dado que tal também é o fim da vida. Por suas características os homens são de tal forma, mas nas suas acções são venturosos ou desgraçados e aí está a matéria dramática.
O teatro espanhol faz questão dos comportamentos e acções dos homens e dos grupos, mostrando que de uma maneira ou de outra, podem alcançar ou não a felicidade, conforme a sua inserção no sistema social onde as possibilidades de felicidade estão garantidas pelo respeito recíproco.
O teatro e a política andaram sempre muito próximos. Desce aí que escritores conhecidos como Aristóteles e Rousseau, Brecht e Sartre, se ocuparam dele, escrevendo sobre o tema.
Em Espanha, abrindo a época a que nos referimos, recordamos Juan de Mariana e quantos participaram na polémica que se implantou desde os finais do sec. XVI, sobre a honestidade das representações teatrais. Apesar de que quem se opôs a elas foi gente de relevo. O teatro seguiu sendo fomentado e sim, em 1646 chega a predominar a corrente adversa e acabam-se os espectáculos teatrais. Muito pouco tempo depois voltam a tolerar-se, desde 1651. De novo as comédias são autorizadas e propagadas, coincidindo com a fase da derrota dos 30 anos e com todo o mau estar social consequente dessas crises.
Esta rectificação desde 1651 parece muito significativa: revela a eficácia da propaganda político-social que se atribuía à comédia pelas mais altas autoridades. Cremos que com o teatro não se pretendia só distrair o público mas sim de fortalecer a ideologia colectiva e fortalecer o estabelecimento do sistema de distribuição dos poderes sociais que se deve considerar amenizado. Posto isto, acudiam-se ao teatro como instrumento de acção entre as massas, função que havia encontrado o seu auge desde a crise de 1600.
Quando se fala de carácter nacional que o teatro espanhol ofereceu, há que referir a comédia, pelas suas características barrocas, um meio de influências nas suas atitudes.
Já fizemos alusão ao barroco como cultura de massas, onde pela primeira vez se apresentam problemas de comunicação massiva. O teatro da época corresponde então a estas características.
Existe no teatro barroco espanhol um fundo comunitário que se manifesta em forma de sentimento pro nacional. Daí elogiar um escritor como Pérez Galdoz, de um nacionalismo democrático, na linha de Renan. Galdoz defendia que o teatro lopesco pinta "Las grandes conmociones de alma" e " Los más visibles caracteres de la sociedad" porque acima de tudo há uma inspiração nacional. Nas suas obras vive um povo com seus heróis.
Mais recentemente, Azorín insistiu que o teatro «clássico» nos dá a fiel estampa da sociedade espanhola do seu tempo. Ou melhor, a imagem que a monarquia se esforçava por conservar nas mentes do povo para evitar críticas.
A comédia dá-nos um conjunto de mitos nos quais se apoia a realidade.
Numa recente obra sobre a matéria, Aubrum considera que o teatro espanhol tem um carácter comunitário que nele se funde o público, actores e autor na adesão a uma ideologia ou a uma mitologia activa. A comedia, formulando para os seus espectadores que contribui a difundir as gentes e apela aos seus sentidos e instrumentos, arrasta-os a aderir às soluções mais conservadoras dos problemas que são sempre sociais e colectivos. Em primeiro as tenções entre a autoridade e rebeldia, que se resolvem sempre a favor da primeira como justiça harmonizante.
Não se quer jamais pôr em questão os fundamentos de ordem social. Com a comédia vem-se a conseguir que, acudindo ao teatro a multidão espanhola esperava encontrar-se nela uma prova de validez do seu sistema social de valores e chegasse a crer que podia reconhecer na comédia uma justificação do seu modo de vida.
O autor considera que esta ideologia conservadora da comédia espanhola esforça-se por conter nas suas linhas tradicionais, a sociedade senhorial e monárquica, numa nova fase de reacção, ou seja, a fase de "montée seigneuriale" de que fala Braudel e se contempla por toda Europa em meados do sec. XVII. O êxito económico e social – como desenvolvimento intelectual – que o sec. XVI conheceu em Espanha, liquidou-se com a "reacção dos elementos da sociedade estática" que desde as últimas décadas de tal centúria se está produzindo entre nós, para alcançar toda a sua força desde 1600 até à segunda metade do sec. XVIII.
A comédia espanhola, como acima foi referido, representa conflitos sociais e não problemas psicológicos. Não se percebe como um violento conflito social não influencia investigações psicanalíticas, ao nosso teatro, já tentadas por Constandse, cremos que podem ser fecundas e não se pode negar um conteúdo psicológico na matéria. A nós interessa-nos o aspecto social.
Pretendia-se restabelecer a estratificação e para tal o teatro é utilizado como instrumento de propaganda.
A desordem da vida moral que se observa na sociedade madrilena de XVII são a consequência e prova de tal tenções. No teatro aparecem testemunhos desse estado, ao ponto que os mesmos contribuem para uma matéria dramática dos nossos escritores barrocos.
Conflitos de amor, de honra, de obediência filial, de submissão, até de rebeldia contra o rei – tenções que se ensaiaram com interpretações freudianas.
A parte que na comédia corresponde ao amor é visto como uma causa de choque social: O amor proporciona facilmente exemplos de conflito entre o indivíduo e as forças sociais dominantes e alienadoras.
A comédia tem um amplo campo sobre o que pretende reportar, dá-nos uma versão ampla da sociedade. Lope considerava que uma das manifestações de superioridade da comédia nova espanhola radicava na variada população de personagens de diferente papel e posição. Se fizermos uma lista de profissões e tipos sociais mencionados nas peças de XVII, tínhamos um repertório quase total das modalidades de trabalho na sociedade da época.
Nesta erupção do mundo social nas suas cenas, huszar comparava este aspecto com a medida e voluntária redução de tipos sociais no teatro de Molière, seguindo Jules Lemaitre, se perguntava onde estão na obra dele o financeiro, o juiz, o magistrado, o advogado, entre outros.
A comédia barroca espanhola abrange todas as classes e não estava capacitada para nos dar uma versão universalmente válida do humano.
Chamo à atenção para que apesar da grande variedade de ocupações na "Arte nueva de hacer comedia" que Lope escreveu como perspectiva do novo teatro, não se encontram apenas determinações que definem por si só as personagens e que devem traduzir-se de diferentes modos de ser estes tratados pela arte dramática.
Temos de ter em conta que nas circunstâncias da nova época, não se trata de aniquilar as energias sociais que haviam despertado, mas convertê-las em defesa de um sistema de interesses contrário, requeriam o engenhoso jogo do dramaturgo.
No entanto, poucos anos antes da revolução lopesca tinha Lopez Pinciano o critério tradicional de ordenação social no teatro:

La tragedia es una acción representativa, lamentable, de personas ilustres...; la comedia es una acción representativa, alegre y regocijada, entre personas comunes.

Mas Lope partiria da referência a essa tradição para nega-la. Antes a comedia tratava:

Las acciones humildes y plebeyas
Y la tragedia las reales y altas,

Mas agora não pode ser assim. Huszar observou que a tragicomédia era um género livre por estar isento de regulamentação nas perspectivas clássicas. Isto faz-nos pensar que resultava melhor adaptar as convenções do verdadeiro programa de acção social que pretendia o teatro.
Em relação a ele, o aspecto mais marcante de inovação de Lope consiste em introduzir o povo na cena, trazendo os valores da capa superior e atraindo nesse sentido a defesa dos mesmos.
Essa possível participação em valores superiores por parte do individuo de classes baixas afirma-se e nega-se, contraditoriamente, nos versos da comédia barroca, revelando assim um carácter conflituoso.
Na "la moza de cântaro", se lope faz declarar ao namorado que nada pode resistir ao amor, que este não repara em desigualdades, não deixa de nos fazer descobrir um interno conflito dentro do peito ao considerarmos a beleza da pessoa em que pôs seu amor...

Sin en esta mujer
No esta oculta la nobleza,
la calida y la sangre
que por lo exterior se muestra
qué es lo que quiso, sin causa,
hacer la naturaleza?

A comédia nova ou espanhola introduz ofícios e mecanismos e chega a apresentar a filha de um guerreiro como sujeito capaz de amar:


...meszclamos la sentencia trágica
a la humildad de la bajeza cómica.

Com o qual se dá um transplante de um sentimento aristocrático, como é o amor.
Creio que o termo "tragicomédia" que adoptam tantas produções de teatro espanhol dá expressão a essa mescla que Lope reconhecia.
Hatzfeld falou do descobrimento pelos escritores barrocos no interesse que a gente que trabalha pode oferecer e do valor artístico, citando obras de Cervantes e de Velásquez. Vemos que o que antecede ao teatro revela a mesma novidade. Da mesma maneira na comédia todos aparecem nesse grande drama de manter a ordem social que em cena acaba sendo sempre o grande e único argumento que se representa.
A grande contradição interna que dá sentido dramático à nossa comédia está em que, partindo de reconhecer a libertação das forças e dos valores do indivíduo, constringe a subordinar-se a uma ordem, só dentro do qual poderão manter-se valores que de contrário, a possessão dos mesmos tinha de ser negada pelos princípios.
Se até aqui as diferença eram aceitadas, agora o autor tem de analisar o indivíduo individualmente em relação à sociedade. Isto revela-nos que a restauração tradicional era problemática e requeria eficazes instrumentos de consolidação como era o teatro.
Era necessário mostrar em cena que as diferenças apareciam de origem natural e delas resultava a ordem da harmonia, com elas era mantido o bem de cada grupo e dos indivíduos.
Os altos e os baixos dos indivíduos são o grande tema da comédia, como da grande literatura que se encarrega de comentar os problemas de estratificação da época.
A comédia quer apresentar ao seu mesclado público um panorama de oportunidades de promoção que se oferece a todos por igual:


-Pienso que te desvaneces
con lo que intentas subir.
-Tristán, cuantos han nacido
su ventura han de tener.
(Lope, "El perro del hortelano)

Também a novela picaresca responde a estas questões. A novela picaresca guarda os tristes testemunhos contra uma sociedade cerrada, devido àquelas consciências que por menos foram capazes de viver o drama do hermetismo. O desejo de melhorar existiu sempre mas socialmente adquire um desenvolvimento inusitado com as crises individualistas do renascimento, unido à crescente consciência da diversidade de inclinações pessoais.
"Addelantarse", "subir a más", são a manifestação social da situação problemática que contempla o teatro. Na picaresca apresenta-se o desfavorável ou de condição duvidosa a que se chama "medrar". O teatro pelo contrário mostra aspectos favoráveis. Nele se exemplificam casos como o de uma infanta, ou de " El perro del hortelano", onde o criado de uma condessa atrai o seu amor e se casa com esta. Ou mesmo o de " La moza de cântaro", onde um cavaleiro se dispõe a casar com uma criada, ou ainda " La gallega Mari Hernández", de uma aldeia que se casa com um nobre. Trata-se de alguns exs. de um movimento igualador.
Segundo palavras de N. Salomon, "un inmovilismo conservador respetuoso de las distinciones de classes". Põe ele requerer-se que a pretensão de ascensão social se produza "com cuerto arbítrio", segundo disse a personagem calderoniano de "El alcalde de Zalamea".
As personagens que aparecem como exemplos da mais meritória moral social são os que se conformam com o seu estado, procurando só as perfeições possíveis em cada um deles.
Essa doutrina inspira as palavras de "La moza de cântaro":



No estoy contenta de estar
Donde, con hacer mudanza
Del hábito, mi esperanza
Aspire a mejor lugar.

Na sociedade do sec. XVII há que predicar estes princípios mostrando os casos de fortuna, legitimando-se a promoção de um indivíduo cujo primeiro valor será precisamente no aspirar a ser mais (ao que a novela picaresca chama medrar).
Para continuar a socializar uma atitude de apoio à sociedade tradicional, de hierarquização aristocrática, a qual é uma sociedade agrária, a comédia fixa-se em casos do mundo rural. Daí que o tema do camponês ocupe tanta parte na produção teatral de Lope e dos escritores seus contemporâneos e, também que neles alcance um valor tão representativo no tema do lavrador.
O grande desenvolvimento do tema rural por parte do teatro mais do que interesses económicos tinha interesses por causas sociais de apoio à sociedade monárquico senhorial. Muito menos se trata de um movimento libertador do camponês – tal como algumas sacudidas europeias com algum eco, dadas as germanas e as comunidades revoltas andaluzas do sec. XVII.
A nosso parecer busca-se incorporar o camponês e posteriormente outros como o mercador, fazem compreender a todos o interesse e a força de contenção do sistema que o camponês pode acatar.
Também o lavrador que vive no campo rodeado pelos seus e com grande fazenda se declara feliz na obra de Rojas Zorilla, "del rey abajo, ninguno".
A personagem de Rojas aceita o sistema de que seja o posto social a base da ordenação dos grupos e dos indivíduos. Por ex. o lavrador honrado que se vê distinguido pelo livre arbítrio do rei:

Y es bien que le dé a un villano
El lugar que otro merezca?

Trata-se de conseguir que os lavradores representem no teatro barroco, oferecendo-lhes uma compensação pela sua felicidade. Tratemos de perceber este jogo duplo.
Estamos perante uma época conhecedora da importância da opinião pública, que sente necessidade de atrair massas. A propaganda de valores da sociedade monárquico-senhorial, que o teatro leva a cabo orienta-se a pôr manifesto que individualmente podem ter também os que não são membros da classe aristocrática equiparar-se e até ascender.
É o problema suscitado pela necessidade de incorporação dos "homini novi", que toda essa sociedade cerrada sente o que constituiu a fundamental temática do teatro do sec. XVII. A ascensão vem a reconhecer-se no teatro barroco porque nele se disse desses casos como os mais abundantes, o qual viria a ser uma constatação da sua reiteração até convertê-la em questionável.
Alguns valores da sociedade cavaleiresca monopolizados pelos nobres são atribuídos e agora se abrem a uma manifestação de outros grupos. Por ex. o amor. Segundo a concepção cavaleiresca, o amor é parte do património dos distinguidos, aos outros cabe apenas uma atracção social.
A excepção do amor pastoril, na novela deste genero é um elemento de evasão, um pouco estravagante, dentro do mundo Aristocrático.
No sec. XVI a doutrina do amor havia-se encaixado, mas em meados de 1600 quando o pensamento social leva a cabo uma transformação na concepção do amor, conforme o sentido da participação de bens superiores da soc. Nobiliária que se desenrola na época. Produz-se uma considerável ampliação do que se chama «derecho al amor» - o amor é próprio de todos e não só dos senhores, que afecta por sinal a altos e baixos. Diz-se em "El perro del hortelano". De outro lado, dos que chamamos «derechos del amor» - o amor pode relacionar pessoas de classes diferentes:



Ninguno amando ofendió
Por humilde que naciese.

(Lope, "los prados de léon)

Em classes diferentes amor é impróprio e anti-natural. Também este ponto a comédia apresenta contraditoriamente, o critério de igualdade e opõe-se ao respeito pelas diferenças.
Frente à antiga sujeição do amor aos limites estritos comportamentais dos estratos, a grande revolução do teatro de XVII está em reconhecer a liberdade daquele que ultrapassa as barreiras sociais. Concebe-se em segurança, segundo a divertida aventura de "la moza de cântaro", o amor como uma inclinação natural, que não repara em barreiras.
Estes são casos de amor pré-romantico que se vêm no teatro. Por isso, a comédia se serve deles. Diriasse que os autores barrocos chegaram a conhecer certos resultados do estado dos câmbios sociais na actualidade sociológica. De acordo com ela dão por descontado que entre o sentimento sobre honra e dever, por parte de grupos diferenciados na estratificação social.
A transformação social do sentimento do amor havia de ter seu ponto mais marcante no campo da honra.

Que amor e honor tengo yo,

Disse o lavrador que Velez de Guevara nos apresenta em "la luna de la sierra". A ampliação social do valor nobiliário que significa a honra e a manifestação mais clara da participação nas virtudes e valores da sociedade Aristocrática, que o teatro de XVII propõe a alguns novos grupos sociais.
A literatura da época também de interessa pelo tema da honra e desenvolve perante os espectadores seu amplo panorama de questões e conflitos de honra.
O que se chama à atenção no teatro espanhol é a parte em que a sua massiva produção concede contra a lei da honra, vista como instituição social. Referimo-nos também a "también la afrenta es veneno", que Rojas, Vélez de Guevara e Copello escreveram em colaboração. Nessas personagens chama-se à atenção contra tamanho convencionalismo:

Oh leyes instituídas
Contra la naturaleza!

O teatro espanhol oferece a vida real da sociedade, proporcionava casos de relação contra esse sistema.
A comédia não desperdiçou a ocasião de revelar o que na honra há de heterónimo, desde o ponto de vista dos sentimentos pessoais.
A comédia fez um jogo duplo: Põe claro o que há de problemático, para realçar o lado dramático e serve-se da força psicológica que por essa condição oferece o princípio da honra.
No fim de se deixar de lado as dúvidas e as dificuldade que a aceitação deste sistema causou, desenrolou-se uma ideia de Lope e Calderón que se converte em lugar comum do teatro. Refere-se à frase: "la vida es sueño". Também isto teria de ser interpretado num contexto social."la vida és sueño é um pensamento que se refere à existência colectiva. O papel de cada um na sociedade é sonho, ficção, teatro. Um sonho a sua representação, o seu papel na sociedade.
O rei sonha que é o rei, o rico sonha que é rico, e o pobre que é pobre - mas que vai ascender.
Talvez a acentuação do estado crítico da sociedade espanhola do sec. XVII levasse a que na fase de El calderón se reconhecesse ao emprego da imagem do sonho. Para calderón a sociedade é o reino da aparência, o teatro da ficção, do sonho. Quando assistimos no mundo a injustiças não nos devemos comover porque só assistimos a uma representação provisória:

Y en el teatro del mundo
Todos son representantes.


Em consequência Calderón chega a uma forma de compromisso e de insuportável imobilismo:

Fingimos lo que no somos,
Saemos lo que fingimos.

Toda a temática do desengano no barroco está orientada e fazia essa mesma finalidade paralizadora.
O sonho da vida é a formula mais conservadora que pode inventar a mentalidade barroca espanhola ao serviço das suas pretensões imobilizadoras. Desta forma, a nova comédia contribuiu para manter o sistema de estratificação social.
No teatro, não só de Lope, se produziam protestos contra as diferenças sociais e isto, que se passava no teatro era o que se pretendia que se passasse na sociedade e o que de facto aconteceu em grande parte dela.
Cabe pensar que em Espanha onde os protestos se faziam em áreas como a Andaluzia, Catalunha, Valência, Aragon, os resultados de imobilização foram resultado do êxito do público ou melhor do colectivo da comédia. Cada um aceita o seu posto e é feliz, pelo menos dá a entender o teatro.
A igualdade fundamentalmente dos homens – doutrina reforçada em Trento, essencial à dogmática da comédia, desde Lope a Calderón viu-se apoiada em sentimentos individualistas e de liberdade, vindo a opor-se a estes. Esta doutrina leva a conformar-se de tal igualdade de natureza, sem pensar em combater as diferenças sociais.
A comédia tem interesse em demonstrar a tenção dos lavradores ricos e isto leva-nos a uma última questão.
Por trás da estrutura social de carácter tradicional inicia-se uma mudança que mais tarde será decisiva na evolução da sociedade moderna. Apesar de na comédia predominar uma variedade geral também na produção dos nossos escritores para o teatro oferecem-nos o fenómeno da divisão entre ricos e pobres.
Disse-se que o dinheiro tinha pouca importância para a comédia barroca, no entanto, não podemos concordar. A economia monetária tem uma presença escassa no teatro, provavelmente porque se vem a rejeitar a situação provocada pelas dificuldades da economia financeira da Espanha aproximadamente depois de 1600.
Por outro lado, na novela, o nobre e o fidalgo e no teatro mantêm-se a tradicional comparação entre nobreza e riqueza.
Na comédia de costumes encontra-se até acusações contra uma juventude de que se disse que, como pretende casamento só procura riqueza. Em todo teatro de XVII há frequentes ref. Às divisões sociais em forma bipartida e nelas sempre se adverte uma referência económico-politica: nobres e vilãos, senhores e criados, ociosos e trabalhadores, distinguidos e não distinguidos, enfim, os que têm e os que não têm.
A comédia barroca conserva os velhos critérios mantendo o prestígio dos grupos privilegiados:

El ser grandes o pequeños,
El servir o ser servido,
En más o menos riqueza
Consiste sin duda alguna,
Y es distancia de fortuna
Que no de naturaleza.

Estas palavras denunciam um critério que era o contrário do que se pretendia fazer crer a todos com a difusão das imagens da "comédia nueva". Esta representava uma grande campanha propagandista a favor de um mundo social estratificado segundo os critérios tradicionais e de acordo com isto se impunha reconhecer as distâncias sociais que não eram acidentais.
Desde este ponto de vista, pois o teatro constituído ao serviço de uma ordem senhorial, as diferenças na sociedade não eram acidentais, logo, não eram externas ao verdadeiro mérito das pessoas.
A julgar pelos poucos protestos que se podem assinalar contra esta maneira de ver durante muitas gerações, não há dúvida que a campanha teatral, desencadeada no sec. XVII conseguiu o seu propósito e o seu apogeu sobre muitas gerações, como um eficaz meio de estancamento da sociedade espanhola.
Naturalmente, sobre o teatro espanhol do sec. XVII são possíveis outras análises de diferentes pontos de vista. Não queremos mais do que tentar ver que a sua interpretação de base histórico-social nos ajudava a aclarar aspectos que até agora nos pareciam confusos e nos resultava insatisfatória a sua consideração habitual.

A Literatura de emblemas no contexto da sociedade barroca

Na mesma época em que o teatro assume um papel relevante como arte dirigida à obtenção de objectivos sociais claramente definidos, ao mesmo tempo se desenrola um género literário característico do barroco e muito ligado ao programa de acção social próprio da cultura europeia do sec. XVII: A literatura de emblemas – tão difundida na Europa das monarquias absolutas.
Entre o barroco e o emblema há um estreito parentesco. Não deixa de ser sintomático o abundante material emblemático que aparece na produção teatral de Shakespeare. No entanto, o tema foi também explorado por Lope de Vega. Pode-se dizer que uma investigação a fundo sobre o tema tinha de se ocupar das referências às comédias, a emblemas que no tempo de Lope circulavam. Todos estes aspectos são mais abundantes no teatro de El Calderón.
A literatura emblemática faz-nos compreender a consideração deste tema e pode-nos ajudar a penetrar na situação histórico-cultural do nosso teatro barroco.
O historiador de arte F. Chueca que se interessa muito pelo barroco não vai acompanhar nenhum caso com inclinação a copiar formas especificas dessa arte. Ele prova que não se trata duma moda artística mas sim, temos de ter em conta uma relação com as situações históricas do sec. XVII. Explica-se o interesse da literatura de emblemas numa época como a nossa onde a sua importância adquiriu na vida das colectividades o uso do slogan publicitário, com apelos a técnicas psicológicas capazes de chamar a atenção. Deles se servirão amplos movimentos de opinião como partidos políticos, grupos económicos e religiosos, entre outros. A foice e o martelo do partido comunista são um autêntico emblema.
Os emblemas podem ser divididos em dois grupos: Os de carácter meramente alusivos e os outros com valor significativo, que são os que nos interessam na literatura.
Desde que apareceu a primeira obra desta classe, os "Emblemata", do italiano Alciato, em 1541, produz-se em toda Europa uma grande quantidade de obras onde se transmite o repertório de emblemas utilizados, o que demonstra as circunstâncias sociais.
Os escritores emblemáticos têm uma especial predilecção por «la literatura de fábulas, en la que vem unos ejemplos libremente preparados para la perfecta y educada expressión de la doctrina".
Observemos agora que no emblema se representam exemplos fingidos, apólogos, que sucedem entre animais e coisas e, nos que o homem entra é só como uma criatura mais do que a natureza. Orozco proibia que se pintasse o homem nas empresas.
Com os meios de que o barroco também se serve pelos fins que persegue, havia de se introduzir novidades. Nesta matéria da literatura de emblemas, como no teatro, encontramos o mesmo programa social, enquanto tratamos de chegar até estes com a nossa investigação.
O que Calderón praticará será a mais sistemática aplicação de elementos sensíveis para a formação doutrinal do público. Calderón cultivou o emblema apartando-se da tradição medieval. Em XVI onde se podia experimentar a força do factor plástico era no teatro. Daí ao auge do teatro no Barroco.
Para a mentalidade barroca, os meios sensíveis de carácter visual têm muito mais força que nenhuns outros. Em primeiro lugar porque o que se vê nos parece coisa insuperavelmente comprovada. Lope disse:

...en llegado
a la prueba de los ojos
como puede haber engaño?

Ainda que o escritor barroco goste de pôr e manifeste o «engaño a los ojos» que o mundo tem a cada paço e ainda que seja motivo de particular virtuosismo para o artista barroco a técnica de "trompe-l'oeil" o certo é que o homem do sec. XVII põe em vista a sua maior confiança.
O emblema deu à obra literária a possibilidade da sua parte óptica, ao modo da pintura. O homem da cultura barroca comprova que para a comunicação ao nível da imagem parece mais eficaz que a nível intelectual do conceito. A isto responde em linguagem da época o sentido de «mover» que os aspectos plásticos da literatura emblemática, como a representação teatral, como a pintura, lhe reconhecem: esses meios visuais, assegura Saavedra, "le informan, le mueven o arrebatan".
O emblema era dirigido a grupos cultos – que constituíam uma massa em XVII, os quais conhecem e lhes são habituais os motivos bíblicos, mitológicos, históricos que se manifestam nessa classe de escritos.
Carvallo deixou-nos o testemunho mais interessante para fazermos compreender o alcance social da questão:

De ver las cosas muy claras se engendra cierto fastidio con que se viene a perder la atención, y así se legrá un estudiante cuatro hojas de un libro que, por ser claro y de cosas ordinarias, no atiende a lo que lee. Mas si es dificultoso y extraordinario su estilo, esto propio lo incita a que trabaje por entendello, que naturalmente somos inclinados a entender y saber, y un contrario con otro se esfuerza, ANSI con la dificultad crece el apetito de saber.

Relações de dependência e integração social. Criados, graciosos e pícaros.

A literatura, superlativamente ao teatro barroco e à novela barroca, não é só o retracta mas sim o testemunho onde se reflecte um estado de espírito da sociedade.
A relação com os criados pertence aos aspectos mais significativos da história da mentalidade social. È um factor de mudança da mesma. Diz-nos como é visto todo um complexo de vida conjunta e faz-nos compreender uma parte do reportório de figuras.
Ao difundir em múltiplas criações de um género como o teatro ou outro como a novela, essas imagens ideologicamente elaboradas, cabe-nos perguntar: trata-se de generalizar e socializar esses tipos humanos? Tratava-se de manifestar e ser contra a classe ou grupo dominante? Alguns desses tipos serviram-se dele para fazer explicito o insustentável regime em que essa sociedade do sec barroco se apoiava.
È no sec XVII que se produz a maior transformação «thesoro» de s. Covarrubias (1611) que dirá: criado é o que serve o amo e este o mantém e dá de comer.
Fazendo ref. A comédias; a primeira, "obras son amores" o gracioso ri da sua inconfessável e baixa origem. Na segunda, uma princesa oferece-se ao lacaio enobrecendo-o com a condição de que a ajude a alcançar seus amores.
Por ex. Francisco de Rojas em "del rey abajo":

…decís verdad,
que soy antiguo, aunque no rio,
pues vengo de un villancio
del dia de navidad

A origem dos criados tinha sido outra e o seu papel que se reflectia na comédia espanhola de XVII. Daí que apesar das alterações experimentadas, se ouçam ecos que procedem a comédia latina ou da literatura de "espejos morales" do medieval.
A literatura política e moral da época discutiu o caso de que se era possível a amizade entre os socialmente desiguais e concluiu que não, dados seus cerrados supostos hierárquicos.
Deixemos o tema criado para nos ocuparmos do termo trabalho. Derivado da palavra latina "tripallium" (nome duma espécie de castigo) leva consigo uma conotação de sofrimento. O trabalho era destinado a quem tem por função trabalhar o campo.
No sec XVI inicia-se uma transformação profunda em duplo sentido. Um deles vai desde os que aplicam o seu esforço às artes e aos ofícios mecânicos, socialmente desqualificados mas obtêm recursos económicos.
Os pintores dos fins do sec XVI e princípios de XVII pretendem ser reconhecidos como membros de um grupo social distinguido. Atendendo à desfavorável situação económica da península como objectivo de reanimar a produção, uma série de economistas, entre outros escritores pretendiam incitar o trabalho e pedem que se favoreça os ofícios mecânicos.
A literatura recorre à regulamentação vigente da sociedade, às limitações que estavam nos modelos clássicos.
Ao chegar ao sec. XVIII também noutros aspectos de descriminação de estratos sociais se foram extinguindo pouco a pouco, outra coisa que foi aparecendo, a polémica em torno da supressão e debilitação mantendo a posição de defensores do regime social da taxa de desonra legal contra os ofícios.
È curioso porque daqui veio a resultar mais partidários de manter a descriminação de desonra sobre os trabalhos mecânicos.
Se até aqui a figura do criado e do trabalhador se tinham transformado, também agora se modificava a figura do senhor.
A superioridade tinha objectivamente como pretendido a dedicação à vida militar, mas através de um processo que no sec. XVI está muito avançado e no XVII em fase de desenvolvimento, A guerra alojou-se no quotidiano da existência.
A economia senhorial rege-se pelo gosto da ostentação. È assim a vida social dos senhores do sec. XV. As condições permitiam mostrar publicamente uma imensa riqueza. Todo aquele que pretendesse ser reconhecido como possuidor de grande poder económico e todo aquele que tenha a sua disposição um grande número de pessoas e as sustenta é reconhecido.
O teatro de Lope repete de vez em quando os transtornadores efeitos da aspiração de subir a estratos sociais superiores: nada destrói mais as repúblicas que os desequilíbrios de estados declaram em "los tellos de Meneses".
Recordemos que no teatro de XVII se encontram referencias tais como consta na comédia "los mártires de Madrid": tudo se dá hoje "a precio de dinero".
Lope disse (no seu teatro): Os criados são gente de pouco preço, até que morrem "uns de fome e otros de esperanza e no pocos de dívidas", em "el perro del hortelano, III. Ou como dizia Gaspar de Aguilar em "la fuerza del interés",

Porque el que criado es,
es un hombre que se cría
Para enemigo después.

Por outro lado, uma grande parte dos assistentes dos espectáculos de comédia pertencia ao mundo dos criados. Lope conhece bem a inquietude que o estado de ânimo popular desperta e sabe também de los íntimos dissabores que tem que suportar aquele que serve outro, odiado pelo senhor e pelos que o rodeiam, todos movidos de uns e outros motivos de aproveitamento:

La barbara naturaleza del servicio

Que Lope denuncia em «la desdicha por la honra». Chega a introduzir este diálogo entre duas personagens revelando uma humilhação que se tem em serviço:

-Mal estás con el servir.
Pues ?no quieres que este mal?

Para encarar educadamente esta situação, dando-lhe um lado positivo, Lope tem uma das suas geniais ideias: A invenção do «gracioso». Esta novidade literária terá ressonâncias de muitos tipos.
O gracioso tem um parentesco com o bobo. Ambos pertencem às formas trivializadas ou pelo menos domesticadas da loucura.
Nesta obra que se abre ao Renascimento e onde se descobre o valor do riso inventa-se outro tipo de personagem, cujo seu desenvolvimento se alcançará quando chegar o período restritivo do barroco. Refiro-me ao «pícaro». Esta personagem ri da vingança, do engano, da crueldade, do mal, da dor que a outros produziu e faz do riso um instrumento desintegrador. Também é um fenómeno social, mas duma forma revertida por ser anti-social.

Teatro, festa e ideologia no barroco

Professor José Maria Díez Borque

Com um ritmo de avanços e retrocessos, a mancha fazia o estabelecimento da literatura do pensamento e da liberdade de expressão do pensamento, dentro das várias linhas em que esta se diversifica, há uma, a liberdade de expressão no teatro, que recebe, até nos regimes políticos mais favoráveis às liberdades individuais, uma regulamentação individual.
A este vem ligado outro aspecto. O teatro, pelas peculiares reduções a que somente a distância vital entre os espectadores e pelo forte impacto que a representação cénica pode produzir e produz sobre a imaginação e os sentimentos de quantos a ela assistem, dá lugar a que a expressão do pensamento cubra em sua versão teatral uma eficácia maior, por exemplo o impresso. Talvez por esta razão, John Milton, na sua "Aeropagítica" se refere à liberdade de imprimir e deixou fora, sem mencionar, a de representar ao vivo num cenário, desde o qual se emitem umas e outras ideias e com muitas forças diferentes.
No teatro cada espectador se mantém isolado dos outros, mas também é certo que em dado momento se pode dar lugar, e assim foi feito, a um fenómeno de contágio que facilita a adesão de esses indivíduos a uma ou outra manifestação ideológica. Isto se dá com mais frequência em situações de fortes crises, altura que o teatro adquire uma potência de transmissão grande.
A eficácia de uma história narrada de um modo singularizado foi reconhecida. Mas posta numa representação virtual, adquiria umas possibilidades de penetração e de assimilação pelo público que as contemplava. "Tímpanos, archivoltas, capiteles se llenaron de imagenes sensibles de «histórias» o «anedotas» o «parábolas», que pasaron despues a vidreras o a libros miniados com una nueva intencion".
A pintura e o desenho, com a difusão e perfeccionismo da imprensa, a gravura que reproduz as suas obras e as possibilidades de emprego de meios visuais para reforçar a assimilação de uma ideologia crescem significativamente.
Se a obra teatral ou dramática é considerada todavia pelas mentores como uma modalidade da poesia e sim, se compreende qual podia chegar a ser a influência da poesia dramática representa nas bancas, para chegar a conseguir a reforma – hoje diríamos a configuração ou manipulação ideológica – das mentalidades dos espectadores.
O teatro está imerso na vida social e busca uns resultados definidos a respeito da ordem da mesma. Referindo-se a todos os países em que o barroco durante algum tempo triunfa, Baltrusaitis defendeu que o teatro e a vida nessa época estão constantemente entrelaçados, até ao ponto de que este investigador no campo da icnografia pensa que certas soluções dos edifícios procedem directamente das formas teatrais.
Não há dúvida que a vida real se vê testemunhada no teatro. Mas, não de uma forma directa e imediata. A acção moldadora do teatro que pretende operar sobre a realidade nos diz o que há a corrigir na sociedade e valendo-se do carácter plástico da mesma, como de quanto é humano, se propõe difundir os comportamentos que deviam ser próprios de uma sociedade dada, antes de se ver numa situação de crises.
Jan Mukarovsky, acerca da necessidade de atender ao contexto social no contexto do teatro barroco, adverte que os motivos de uma obra podem ser muito diferentes do que hoje se estima; as obras não eram naquele tempo criação livre, ocorrência pura e simples do autor. Estavam feitas de encargos e os grandes escritores trabalhavam para o rei, o governante, talvez para algum nobre rico e elevado: é um teatro de encargo.
É sabido a força configuradora da cultura das imagens e pôr isto em jogo é uma das novidades do sec. XVII. Por esta razão, o teatro, aparte de outros aspectos que nos ofereça, vem a converter-se no grande instrumento para captar as maiores energias sobre os grupos amplos das cidades, as quais em captação sobre os grupos amplos das cidades, decrescem aos do mundo rural. Desta maneira, o teatro barroco, como meio de integração e de captação de uma população numerosa tem condições sumamente favoráveis, tem-nas também devido à sua maneira de penetrar a sua influência no interior dos homens, isto é, por via de contagio extra racional que pode mover as vontades.
É obvio que os privilegiados do sistema, os membros das classes dominantes tradicionalmente instaladas nesse nível e aqueles que, por um ou outro vínculo, se moviam ao seu serviço, os mais interessados em manter a ordem recebida e reforçar sua resistência. Foram estes, muito especialmente os escritores dependentes de grandes senhores e inclusivamente do rei – como Lope e Calderón – quem perspicazmente optaram pela utilização do teatro a fim de levar a cabo uma extensa campanha a favor dos poderes estabelecidos e do regime de interesses afecto a eles.
Salvo restos subsistentes do sec. Barroco que chegará até avançada época do século seguinte, o que se trata agora é de um dirigismo de certo modo de sentido oposto: um dirigismo reformador, que reclama a participação na empresa de educar a gente para um futuro modo de vida social mais recomendável, um dirigismo educativo e impulsionador, que com frequência a fim de se fazer compatível com os desejos de liberdade, se apresenta como provisório, aplicável só nos indivíduos que conheçam seus próprios e verdadeiros interesses.
Creio que com esta comparação acaba de se aclarar o que era muito diferente da sua versão ilustrada, a versão barroca do dirigismo político e social no sec. XVII. Trás uma experiência de expansão e mobilidade no sec. Renascentista, os grupos dominantes temem ver-se desprezados pela crescente maré de inconformistas, aspirantes a ascender em escala social, marginais activos, entre outros.
Lope sabia muito bem que esta tendência geral à conservação da sociedade tradicional não era certa. Daí que quase toda sua obra se dedique a mostrar problemas de estratificação social e paralelamente de hierarquia do poder.
Para Calderón educar o povo significa que o lavrador tinha que aceitar conscientemente a sua inferioridade, querida pela providência. Esse teatro que o povo não entendia era educativo porque os fazia ver que havia outros níveis de cultura. O povo estava obrigado a respeita-los e a não aspirar e eles.
O teatro possui todas as características e em seu modo mais favorável, as da festa barroca. Porque não se pode, saltando sobre as crises expansiva e renovadora do renascimento, voltar a uma restauração, nem sequer conseguir um sólido reforçar da sociedade hierárquica, com um só voltar atrás e empregar a força ou afago. Para fazer entrar de novo às gentes saídas do leito dos rios, o que quando menos contemplam esta abordagem com satisfação e com esperança, para lhes fazer voltar a ocupar suas posições na sociedade, são necessários outros meios.
O teatro barroco é necessário apresentar-se de uma forma que resulte atractiva e capaz de imprimir a sua mensagem, a fim de captar a atenção dos destinatários a todo momento. Vem a constituir-se como uma espécie de reflexo.
É certo que sempre terá que levar um componente de divertimento. A invenção Lopesca do «gracioso» atende a este aspecto e com ele se procura aproveitar a força integradora do riso.
Por outro lado, Calderón defende que mais facilmente se retrata fielmente a formosura. A combinação destes variados elementos, ao passo que se dava relevância à tragicomédia, reinventada em XVII, aumentava os elementos postos em jogo e potenciava a função de distrair. Com ele, a festa barroca, sobretudo na sua modalidade do teatro, acaba por coincidir com os fins da política de repressão.
A festa pública do barroco admitia esta mistura de elementos que lhe permitia aproveitar um quarto factor: a acção surpreendente do imprevisto que pode assustar ou admirar aqueles que a contemplam.
Disto vinha-se a constituir uma prova de tão repetida e apreciada festa dos fogos de artifício com suas fantásticas iluminações que viria a provar o domínio das artes do fogo.
Através das representações ou exibições plásticas de todo tipo se pretendia conseguir algo mais. Segundo se depreende de alguma alusão que se queria infiltrar nas consciências. Para alcançar esta finalidade que familiarizavam com o espectáculo da violência, preparavam os ânimos para a violência repressora do barroco. È assim que se faz o espectáculo das excussões dos réus condenados à morte, as quais se levam a cabo em grandes praças para que possam assistir muitas pessoas.
Em todos estes actos o importante é contemplá-los desde o lado do público. Com relação a isto é de assinalar uma segunda característica da festa barroca: "fiesta por contemplación". Diferencia-se neste aspecto fundamentalmente da festa por participação na qual tudo vai dirigido àqueles que nela intervêm para prazer dos que bailam, etc. é o caso do que no sec. XVIII se chamará diversões. O público se aglomera para ver fogos de artificio, uma corrida de touros, um desfile, entre outros.
O teatro oferece outras possibilidades mas cada vez que se dá uma representação a capacidade não chegua a tanto, mas a repetição destas é mais frequente e a permanência do público no espectáculo maior, produz-se um impacto consideravelmente sobre o nº de gentes e nas comédias de XVII a afluência de assistência às representações é relativamente grande. Barrionuevo conta um acidente bem claro disto: Ao terminar uma representação em El Corral del Príncipe, tal havia sido a concorrência que um homem caiu e morreu pisado pela multidão.
O teatro permite levar até aos olhos de quem o vê as invenções que são tão ao gosto do tempo. A paixão pelas novidades que impulsiona o povo e que não pode manifestar-se em terrenos políticos e sociais, encontra no teatro um campo para satisfação muito maior que nas outras festas. Exalta-se a habilidade de fazer com que os corpos ascendam à parte alta do cenário, que nuvens, montes, cavalos, etc, se movam em cena seguindo a admiração pelos prodígios. Era pois o teatro uma festa para admirar, mas sempre em atitude passiva de respeito ao desenvolvimento da acção.
Se a todas as artes visuais era-lhes comum a capacidade de impressionar o ânimo e mover a vontade, nenhuma tinha a força do teatro. Na cena desenrolava-se uma acção que punha a descoberto a grandeza da pessoa do rei e a legitimidade da sociedade hierárquica no fundo, só que agora se via incomparavelmente potenciado pelo emprego de novos meios. Com a representação de comédias começou-se a considerar que se introduzia uma corrupção abominável, e a causa mais generalista era o espectáculo teatral e a conduta licenciosa das gentes ocupadas no teatro. A condenação aparecia assim ligada à situação específica do barroco.
Sem efeito, as altas autoridades civis não se mostraram dispostas a aceitar a reiterada petição, da proibição das festas teatrais.
Em 1603, o Conselho de estado considera que as festas são muito convenientes e devem difundir-se em outras villas e cidades. Foi a partir de aqui que se produz a torrencial aparição de obras dramáticas.
Finalmente, apesar de que o predomínio urbano se filtrava por todas as partes e só sobre a sua plataforma era possível a campanha de propaganda do teatro, em geral a quase totalidade das comédias, o tema se apresenta na sociedade rural, onde, o objectivo de incorpora-los ao sistema hierárquico vigente se concede e seus mais ricos e influentes membros chegam a desfrutar de um prestigio quase nobiliário. Com ela uma economia agrária, à que se subordinam os interesses de uma primeira industrialização da que não gostam reis e grandes senhores. A maioria das comédias dão-se no mundo rural e se baseiam na economia agrária e com esta frequência contêm festas públicas e um esquema de "beatus ille" como ideal restaurador.