quarta-feira, julho 30, 2003

O Mito da Opinião Pública

INTRODUÇÃO

Nos dias de hoje, com os meios de comunicação cada vez mais avançados e difundidos, ao contrário do que poderíamos pensar, verificamos uma maior «desinformação» da opinião pública, pela sistemática acção da propaganda no dia a dia.
Isso é notório principalmente no que toca a questoões de índole plitico-ideológicas, nomeadamente no que se refere à Chefia do Estado. Neste campo são profícuos os mais absurdos disparates, difundidos desde o séc. XVIII, e que se tornaram nos pilares da argumentação dos defensores da «República Universal» contra o regime Monárquico.
Antes de mais é preciso definir que a propaganda consiste no emprego planeado de qualquer forma de comunicação destinada a afectar as ideias, emoções e acções de um dado grupo com determinada finalidade. Logo a propaganda é um fim; é o fim que faz dela propaganda, e não a sua veracidade ou falsidade. Assim é fácil perceber o porquê, de alguns mitos criados à volta da Monarquia, ainda que permanecem nos dias de hoje, muitas vezes enraizados no subconsciente, através da acção da propaganda de 90 anos de República.
Um dos factores que mais contribuiu (e contribui) para a difusão desses mitos, foi a sistemática ignorância a que votaram a aprendizagem da história de Portugal
O mito dos Reis como detentores do «poder absoluto», não pode ser dissociado de um contexto global europeu, numa visão à luz da sua época (entre os sécs. XV a XVIII). No caso português, até essa visão pode ser muito discutida, pois até no tempo do Marquês de Pombal, o rei não podia criar novos impostos sem prévia autorização das Cortes representativas da Nação; muito menos se pode ter esse tipo de argumentação a partir de 1833 até 1910, quando vigorou entre nós a Monarquia Constitucional. Quando hoje se fala em Portugal de Monarquia, não é possível dissociar-se de regime Constitucional, Parlamentar, e Democrático.
Outro mito enraizado e confundido com o regime Monárquico, é o da «volta» da Nobreza o de seus «privilégios». É um absurdo pensar que a Restauração da Monarquia Constitucional, trará à Nobreza, os «privilégios» que na própria vigência da Monarquia lhe foram tirados. A começar com a acção do Marquês de Pombal, ao acabar quase por completo com os senhorios; seguido por D. Pedro IV, com o fim das doações Régias dos bens da Coroa e Ordens; culminando no Reinado de D. Luís, com a abolição dos Morgados. A Nobreza por si existe tanto nos dias de hoje numa República, como existirá numa Monarquia. A nobreza entre nós sempre foi uma classe aberta para entrar e sair, logo a sua existência deve ser encarada em duas perspectivas: 1ª -a génese- para premiar o mérito e os serviços relevantes de uma pessoa prestados ao País; 2º -a perenidade- com a perpetuação na descendência da memória dos feitos dos antepassados, fazendo com que brilhem as virtudes e valores que fizeram o nome da sua Família contribuindo assim para a grandeza de Portugal.
O último mito mais propalado é o dos custos da manutenção de uma casa Real! Este argumento é um dos mais constrangedores para a República, visto ser exactamente o contrário. Assim vejamos o caso Português, onde para além do Presidente em funções, temos três Presidentes reformados que auferem 80% do vencimento do Presidente em funções, tendo «automóvel do Estado para uso pessoal, com motorista e combustível, gabinete com telefone, secretária e assessor, etc. e ajudas de custo iguais às do 1º Ministro. Acresce ainda a figura criada da «Mulher do Presidente», que sem qualquer atribuição constitucional, aufere de uma série de regalias semelhantes às dos Presidentes reformados, etc.
Assim constata-se que em Monarquia não há despesas com eleições, nem com «Reis reformados». As dotações orçamentais das Casas Reais do Continente Europeu são todas inferiores à dotação da Presidência da República de Portugal.
Como saberá o céptico da Monarquia, distinguir entre a verdade e propaganda? A resposta é simples: Se concorda com o texto que leu, é verdade; se não concorda, é propaganda.


Este texto procura debruçar-se sobre o papel desempenhado pelas convenções inerentes à linguagem jornalística na compreensão da ordem social e na configuração do espaço público. Neste sentido, tenta-se, em primeiro lugar interpelar um fenómeno que costuma ser designado por «mediatização do espaço público». Seguidamente, analisa-se a atitude epistemológica que percorre o jornalismo e se manifesta na crença da adequação entre os enunciados e os factos, relacionando-se essa atitude epistemológica com um conjunto de práticas discursivas, normas estilísticas e orientações reguladoras que indiciam a vocação do jornalismo para superar o caracter aleatório do mundo, permitindo aos acontecimentos inscreverem-se nas grandes regularidades sociais. Procura-se, depois, discernir na linguagem jornalística a vontade de conformidade com o senso comum, com o saber partilhado por todos, tido por adquirido e socialmente aceite, fazendo-se um paralelo entre as atitudes e práticas discursivas consagradas na profissão jornalística e a «atitude normal», pragmática e realista, descrita, por autores como Schutz ou Gurswitch. (GURSWITCH; SCHUTZ, 1976). Finalmente, confrontam-se as dificuldades de uma linguagem jornalística – que se apresentou como tendencialmente homogeneizadora e adequada à formação de consensos sociais através da observação, classificação e denúncia de tudo o que se afigura como desviante em relação à norma – em face de uma sociedade que se apresenta como sendo cada vez mais diversificada e pluralista. Nesse sentido, interpelam-se dificuldades da relação entre o jornalismo e a cidadania, num momento em que se verificam consideráveis alterações no espaço público. De um lado reconhece-se o ressurgimento do poder do jornalismo. (TRAQUINA, 1995: 189 – 221) Porém, do outro, as diversas tentativas de elaboração de uma teoria crítica dos media redescobrem a necessidade de uma leitura nova da própria ideia de público (FERRY,1995: 54 – 58), além de induzir a necessidade de uma preparação científica sólida por parte dos profissionais de Comunicação Social.


A dimensão simbólica do espaço público

Num certo sentido, o espaço público sempre se relacionou de forma incontornável com o aparecimento de media simbólicos, pelo que podemos encontrar uma relação complexa entre variáveis económicas, culturais e comunicacionais que se interpenetram. (HABERMAS, 1984; STRYDON, 1992: 2 – 3) Desde o papel das cartas e da imprensa até à recente explosão das novas tecnologias, muitos seriam os pretextos históricos para se encontrarem relações profundas entre diversas instâncias sociais e o agir dos media. Com o surgimento dos meios de comunicação social, tal como os entendemos hoje, enquanto estruturas proficionalizadas de distribuição de mensagens, aquilo a que assistimos é à própria profossionalização da actividade mediadora que se instaura e consolida como uma dimensão constituinte e estruturante da sociabilidade.
O uso dos meios de comunicação transforma, de forma fundamental, a organização da vida social, criando novas formas de acção e de interacção e de exercício do poder. Ao utilizarem os media, os seres humanos estão a construir redes de significação para si próprios. (THOMSON, 1995: 11)
A linguagem dos jornalistas, fortemente condicionada por normas e convenções estilísticas, contribui para informar a percepção da ordem social. Qual é, afinal, a relação entre o estilo jornalístico e a compreensão inter subjectiva da realidade social? De que forma a linguagem e o estilo praticados no jornalismo se instala no papel de formação dos consensos e na instituição, reprodução e discussão das normas? Se o jornalismo é a principal instância de visibilidade da via pública, como é que traz a política a luz, produzindo o nosso esclarecimento? De que forma o jornalismo se afirma como máquina produtora de sentido? Todos os dias estas questões atravessam as nossas interrogações sobre o jornalismo.
Na resposta a estas perplexidades, um elemento que emerge com regularidade é a suspeita de que a linguagem jornalística tende a reproduzir o que é socialmente aceitável e predictível. Os valores-notícia reflectem critérios de selecção do inesperado que é sempre o negativo do que é tido por adquirido. O próprio estilo jornalístico, a forma como é entendida a sua relação com a verdade e sua tradução nas respectivas normas de organização discursiva parecem muito mais adequadas a relatar ao mundo na sua evidência, tal como ele se oferece ao senso comum. Porém, se o jornalismo enfatiza o que é socialmente predictível correcto, o risco de desenvolver uma escrita conforme ao estereótipo, também elimina o contingente e o incerto. Nesse sentido, «o discurso dos media surge para organizar a experiência do aleatório e lhe conferir racionalidade.» (THOMSON, 1995: 15) As instituições noticiosas debruçam-se sobre o que está fora do lugar: o que é desviante, equivoco e imprevisível. A prática jornalística é particularmente sensível aos acontecimentos mais calamitosos que se mostram mais difíceis de classificar ou que contrariam, de forma mais clamorosa, as expectativas sociais. (ERICSON et al, 1991:4)
Assim, o jornalismo contribuiu para a «construção social da realidade», para a rotinização da própria dinâmica social, estabilizando-a em comportamentos-tipo, comportamentos previsíveis e erupções controladas. Esta estabilização é tanto mais violenta quanto deve deveria resultar de uma composição de normas onde a identificação do que é relevante resulta de um esquematismo pré-determinado. «Assim, a construção da noticia implica a utilização de enquadramento (frames), um conceito aplicado por Erving Goffman à forma como organizamos a vida quotidiana para compreendermos e respondermos às situações sociais.» (TRAQUINA, 1995: 202) A novidade limita-se ao incidente que assegura, pela negativa, através do seu caracter excepcional, a permanência das grandes regularidades. Nesse sentido, enquanto agencia de controlo social, as representações noticiosas dotam as pessoas com as visões e versões da ordem social que obtêm a preferência e com base nas quais os agentes tomam as iniciativas que julgam adequadas. (ERICSON, et al, 1991: 4)
Contemporaneamente, o espaço público contemporâneo pode ser designado por «espaço público mediatizado», no sentido em que é funcional e normativamente indissociável do papel dos media. (WOLTON, 1995: 167). De entre a actividade mediática em geral, o jornalismo escrito desempenhou um papel decisivo na estruturação do próprio espaço público e do consenso social: sem o jornalismo não se formaria opinião pública ou pelo menos esta teria uma configuração decerto diversa daquela que conhecemos. Porém, muitas das vezes graças a ele, e a dinâmicas que se geraram em seu redor, o mero conformismo com as atitudes públicas julgadas dominantes substituiu os mecanismos verdadeiramente públicos de formação da opinião.
Este trabalho pretende ver como a específica linguagem que se pratica no jornalismo, designadamente no jornalismo escrito, está, efectivamente, ligada à modulação da compreensão intersubjectiva da realidade. Trata-se, em suma, de saber se a linguagem é já ela condicionada por códigos que conduzem inelutavelmente a uma certa visão do mundo – ou se, pelo contrário, pode ser um espaço de racionalidade polimórfica, que foge ao estereotipo e aos signos de condensação que conduzem a uma visão da realidade que se esgota na celebração do «mesmo». Será que esta prática discursiva contém, apesar de tudo, várias possibilidades de dizer ao mundo que não se esgotam no estereótipo e que por isso permitem reconhecer-lhe uma possível dimensão crítica? Mais ainda, sabendo que o espaço público está sujeito a múltiplas tenções que apontam para a sua diferenciação e fragmentação, qual é o lugar que é reservado aos media na participação do intercâmbio de opiniões e na formação de consensos? A resposta não pretende ser nem linear nem maniqueísta. «Por maiores que possam ser as afinidades entre os mass media e os media funcionais de regulação (essencialmente, o dinheiro e o poder), os primeiros guardam uma especificidade própria, resultado do seu irredudível caracter simbólico e linguístico. Eles inscrevem-se em última instância, no universo sócio-cultural, obedecem às exigências da intercompreenção e, nesta medida, a sua lógica de funcionamento nunca pode ser estritamente (nem predominantemente) sistemática e funcional.» (ESTEVES: 1995: 98 Nesse sentido, encontramo-nos perante tendências que estão longe de se tornarem hegemónicas. Assim, no dia a dia, a linguagem dos media pode ser um factor de desestabilização de ordens dominantes, chamando para o espaço público, elementos de avaliação que permaneciam obscuros aos olhos do público e que se constituíam como «nós» no seio do mundo da vida, originando elementos que contribuam para a sua reificação. Pelo contrário, ela pode precisamente reproduzir os compromissos estabelecidos, impedindo a problematização crítica da realidade, através do recurso a práticas discursivas que insistem na estabilização do que existe.
Salvaguarda-se, assim, a ideia de que estes traços atrás descritos não conduzem necessariamente a uma espécie de fatalidade: os media contém, apesar de tudo, uma encruzilhada de possibilidades que se jogam no campo do político e do social. A esperança que aqui se defende de um jornalismo moderno, fundado na ideia de que é possível fazer uma reflexão crítica, é toda ela fundada em perplexidades e incertezas, novos desafios e oportunidades. Sob o ponto de vista da investigação e prática futuras, parece-me um ponto de partida profundamente estimulante.


A epistemologia jornalística e a controvérsia da objectividade

A objectividade é um assunto muito debatido, não apenas em jornalismo e comunicação mas em todas as Ciências Sociais. A objectividade (o relato da realidade imaculado de opiniões ou sentimentos) foi defendido como um ideal pelo qual os jornalistas deveriam lutar. Porém todas as nossas percepções e acções são influenciadas pelas nossas culturas e influencias. Tomar o jornalista consciente deste facto permite-lhes questionar e auto- questionar-se sobre a legitimidade da sua percepção em particular. (GOVIER 1988: 99) De acordo com esta perspectiva, «o ideal da objectividade sugere que os factos possam ser separados das opiniões ou juízos de valor, e que os jornalistas consigam uma distanciação relativa aos acontecimentos do mundo real cujo significado e verdade eles transmitam ao público através de uma linguagem neutra e competentes técnicas de reportagem. Assim, os media noticiosos ofereciam o resumo fiel dos acontecimentos noticiáveis do dia – os mais relevantes e interessantes para o público. Os media imparciais dariam, quantitativa e qualitativamente uma cobertura equilibrada às perspectivas políticas e legítimas em concorrência.» (HACKETT, 1993:105)
Os estudos sociológicos levados a efeito no campo da comunicação (nomeadamente o newsmaking) acabam por tornar evidente que existe todo um conjunto de constrangimentos e rotinas – ou seja de elementos que integram o campo de enunciação – que nunca se deixam ver graças ao conjunto de mecanismos objectivantes omnipresentes no discurso jornalístico. O recurso sistemático à terceira pessoa e a omissão generalizada do sujeito da enunciação; a indicação específica de omitir os deícticos de lugar e de tempo (hoje, agora, ali, aqui), por serem marcas que remetem para um sujeito que se pretende a todo o custo ocultar, constituem mecanismos objectivantes que visam, antes de tudo, construir um poderoso efeito de adequação total à realidade. Ou seja, relatam-se os factos, omitindo-se tudo quanto diga respeito a quem os relatou e em que condições os fez.
A análise desta problemática conduziu a um conjunto de teorias que se resumem na ideia central de que a objectividade deve ser entendida como uma marca ideológica ou um conjunto de procedimentos tendentes a suportar a credibilidade do relato jornalístico. A necessidade de proceder sob um ponto de vista idealmente «neutro» que permitisse legitimar o discurso em nome do bem público contra os chamados interesses particulares ou de facção, colocando o jornalista ao abrigo de eventuais dissabores (SCHILLER, 1979: 47); a utilização desse conjunto de procedimentos a fim de restabelecer a legitimidade do relato noticioso em face da concorrência crescente de agentes de relações públicas ou da contra informação em tempo de guerra, (SCHUDSON, 1978: 22), a obrigação de obedecer a um ritual estratégico que inclui a observância de um conjunto de procedimentos, com a audição das partes em conflito, a apresentação de provas, o uso das aspas, a estruturação da informação de forma sequencial, que permitam ao jornalista apresentar-se como objectivo, protegendo-se dos riscos da sua profissão, como sejam eventuais processos de difamação ou repressões dos superiores (TUCHMAN, 1993: 74) têm sido algumas das teorias avançadas por historiadores e sociólogos que não acreditaram numa espécie de «ideologização» da objectividade postulada em nome de uma crença empirista ingénua na possibilidade de relatar os factos como «verdade».
Finalmente, para Hacket, a teoria de que o equilíbrio entre visões controvertidas omite uma maior aproximação em relação à realidade implica uma dificuldade epistemológica: o relativismo que se esconde através das práticas rituais de apresentação contraditória do mesmo acontecimento tornam dificilmente justificáveis às próprias pretensões de verdade das organizações jornalísticas. Em alternativa, a ambição de uma visão imparcial dos factos implica uma presunção positivista de acordo com a qual, os jornalistas e os media noticiosos são observadores independentes, separáveis da realidade social, pelo que, quando correctamente utilizado, o meio noticioso podia assegurar a sua veracidade. Qualquer destas posições implica que se remeta a objectividade do campo jornalístico muito mais para considerações de ordem prática relacionadas com a defesa do profissionalismo jornalístico ou com interesses comerciais do que com verdadeiras preocupações sobre a adequação do relato à verdade. (HACKETT, 1993: 106) Existe uma inevitabilidade dos media noticiosos em estruturarem a sua representação dos acontecimentos sociais e políticos que têm muito mais a ver com as características do próprio trabalho jornalístico do que com a natureza dos acontecimentos relatados. Assim, para dar conta dessa inevitabilidade basta chamar os estudos efectuados no âmbito do paradigma do «newsmaking» e que têm em conta questões como as interacções burocráticas dentro das organizações jornalísticas, as limitações colocadas pelos orçamentos e pela conquista de audiências (HACKETT, 1993: 107), as convenções narrativas de que são exemplo a própria pirâmide invertida, as metáforas e frases feitas graças as quais se consegue facilitar o efeito de reconhecimento (TRAQUINA, 1988: 30), para além das próprias distorções e limitações inerentes à natureza do medium, como sejam os valores noticia aos quais os mediadores recorrem para legitimar a sua própria selecção no que respeita ao acesso aos media dos assuntos, valores e temas, a determinação do tempo e do espaço concedidos, a possibilidade do exercício do direito de resposta. (FERRY, 1995: 62)
Finalmente, a objectividade pode, ela própria ganhar um sentido ideológico. Ou seja, ao construir-se um discurso especialmente virado para a descrição do que existe, o que é natural, o que é tido por adquirido, cai-se facilmente, independentemente de qualquer imputação de intencionalidade conspirativa, no risco de construir um discurso sobre a norma e o desvio. Os relatos podem ser ideológicos, não por causa de qualquer forma da parcialidade ou de manipulação intencional dos dados mas porque são produzidos no interior de uma determinada matriz ideológica. (HACKETT, 193: 121) Os relatos podem eles próprios tornar-se uma peça essencial para o funcionamento ideológico do media na medida em que possam reflectir, sem o recurso a qualquer forma de utilização distorcida dos dados, os grandes consensos sociais, favorecendo a sua aceitação e a sua consagração. Determinadas formulações discursivas seriam ideológicas não por causa das distorções manifestas nos seus conteúdos superficiais, mas porque eram originadas numa matriz ideológica limitada. (HALL, 1982, 72) Assim, na perspectiva de Hall, os media só podem sobreviver operando dentro das fronteiras do que é admitido por todos: o consenso. (HALL, 1982: 87). Os media tornam-se parte do processo dialéctico de produção de consenso, modulando-o o consenso à medida que o reflectem. Assim, o McCarthismo, a Guerra da Coreia, e ao apartheid são alguns dos exemplos de situações que se tornaram complexas em resultado de uma interpretação estreita dessas normas. Entre nós, é possível encontrar no Boletim do Sindicato dos Jornalistas um artigo datado dos anos 40 onde se procede à apologia cerrada da objectividade, já que segundo o articulista, este método era o que melhor se adequava à política de neutralidade seguida por Portugal durante a Guerra. Curiosamente, pode-se concluir que a objectividade, feita a pensar na salvaguarda de um outro valor a independência, era afinal exaltada porque servia os interesses de um poder estabelecido, no caso uma ditadura.


A notícia como forma narrativa

A narrativa jornalística, através de uma linguagem dotada de características próprias, intervém na conformação das dinâmicas sociais, desencadeando mecanismos que afectam toda a actividade dos agentes na aquisição e reforço dos conhecimentos e normas pelas quais se pauta a compreensão do mundo. A questão essencial sobre a qual se incide é também epistemológica: de que modo o estilo praticado na imprensa – informado por uma determinada concepção de verdade – tem repercussões na distribuição do conhecimento e na formação dos consensos sociais e políticos?
Este tipo de interpelação pressupõe no nosso ponto de vista, uma pragmática do saber jornalístico, a qual deve chamar a atenção para a dimensão narrativa. A comunicação madiatizada dos tempos modernos transporta consigo uma forma de vida própria, sintetiza de modo original a constituição da experiência comum e da memória colectiva, com profundas implicações no nosso quotidiano – ao nível das formas de percepção e conhecimento, da prática política, da vivência das relações de poder e da experiência íntima de cada um. O seu caracter ambíguo, simultaneamente, abre espaço a contradições conhecidas. O saber jornalístico, partilha, por um lado, características do saber narrativo, caracterizado pela poliformidade de saberes e enunciados (cognitivos, avaliativos, prescritivos), abertura ao mundo da vida e ao consenso consuetudinariamente fundado. Por outro lado, parece trazer dentro de si uma ambição de cientificidade que pressupõe a hegemonia do seu cognitivo da linguagem e a atribuição do monopólio desta forma de saber a instituições especializadas e profissões adequadas nas quais só o «especialista» é possuidor das competências que asseguram a legitimidade dos enunciados. De uma certa forma, nos rituais da objectividade, o produtor da informação como que mima, imita a posição do observador científico. Debrucemo-nos sobre o primeiro lado da questão.
No que respeita à relação profunda entre o discurso jornalístico e o saber narrativo, basta recordar que a construção de uma história pressupõe, como recorda Paul Ricoeur, a intervenção mediadora de uma intriga. «A intriga é o mediador entre o acontecimento e a história.» A construção de uma narrativa pressupõe a selecção dos elementos que permitem fazer progredir a «estória». Nesse sentido, «um acontecimento não é apenas uma ocorrência, alguma coisa que acontece, mas uma componente narrativa.» (RICOEUR, 1991, 26) Nesse sentido, «a intriga é o conjunto das combinações pelos quais há acontecimentos que são transformados em história ou – correlativamente – uma história é tirada de acontecimentos.» (RICOEUR,1991: 26) A intriga surge assim como um acto de conjugar os ingredientes da acção humana que, na experiência quotidiana, permanecem heterogéneos e discordantes. Porém, a progressão da estória desenvolve-se de acordo com uma lógica socialmente aceite e de acordo com uma tradição que nos permite a compreensão do acontecimento subsequente. O jornalismo correspondeu à necessidade de novas classes urbanas emergentes. Nesse sentido, podemos de novo regressar a Ricoeur para aplicar à nossa concepção de narrativa jornalística uma reflexão que o autor fizera a propósito da história: «Uma noção ingénua de narração, como sucessão desgarrada de acontecimentos, encontra-se sempre no plano de fundo da crítica do carácter narrativo da história. Apenas se vê o seu caracter configurado, que é a base da sua inteligibilidade. Ao mesmo tempo desconhece-se a distância que a narração instaura ou estabelece entre ela própria e a experiência vivida.» (RICOEUR, 1991: 27) Aplicando o mesmo raciocínio para o jornalismo ele surge-nos como uma certa configuração de sentidos, pelo que constitui atitude ingénua aquelas que analisam as notícias como espelho da realidade e não como configurações narrativas, dotadas de uma intriga que confere inteligibilidade e unidade a acontecimentos desligados entre si de acordo com a visão que prevalece na narração do mundo da vida. É neste sentido que temos de compreender o papel desempenhado pelos precedentes e a organização de normas correspondentes aos diferentes géneros jornalísticos.
Referindo-nos aos precedentes que estabilizam as formas de narração de acontecimentos idênticos ou semelhantes, podemos dizer que «existe uma organização da intriga.» e de um paradigma jornalístico como «tipo de organização da intriga, oriundo da sedimentação da prática narrativa.» (RICOEUR, 1991, 27-, 28).
Nesse sentido, não é possível deixar de ter em conta a concordância de Gaye Tuchman com Robert Park, segundo a qual «a notícia de jornal é uma forma de literatura popular, uma reincarnação das ainda populares novelas apresentadas de uma outra forma.» (TUCHMAN IN TRAQUINA, 1993: 258). No mesmo sentido não é possível deixar-se de se ter em conta as discussões que se promovem no seio da historiografia contemporânea acerca da diferença entre «acontecimentos e histórias sobre acontecimentos.» (BIRD E DARMENNE in TRAQUINA, 1993: p. 264).
A organização dos elementos da notícia, por uma ordem de importância decrescente, elemento fundamental da identidade deste género, a introdução do parágrafo universalmente conhecido por lead, o uso de uma espécie de escrita branca, minutada que agradasse a todos os clientes, as exigências colocadas para assegurar a agradaibilidade do relato como a utilização da frase curta e concisa, a necessidade de evitar ou abusar dos advérbios de modo, por dificultarem a leitura, o recurso aos verbos na voz activa que conferem ao jornalismo uma «personalidade própria» são orientações na criação da narrativa que se devem ter por culturais e não naturais. BIRD E DARDENNE, 1993: 265) Nesse sentido, o género narrativo universalmente conhecido por notícia pode funcionar, nas nossas sociedades diferenciadas, como uma espécie de mito, através dos quais os membros de uma cultura moderna aprendem valores e definições de bem e de mal (BIRD e DARDENNE, 1993: 266), no qual se cria ordem da desordem, oferecendo tranquilidade e familiaridade em experiências comunitárias (MEAD, 1925-1926 apud BIRD et al, 1993: 266) e se oferecem informações credíveis e respostas prontas para fenómenos complexos. (JENSEN apud BIRD et al, p. 266). O discurso noticioso torna-se desta forma um discurso sobre a ordem e o comportamento aceitável.


A construção social da realidade

O modelo de análise que se configura como mais consentâneo com os estudos recentes levados a efeito é o que descreve a informação como «construção da realidade social». Com efeito, a realidade não pode ser completamente distinta do modo como os actores a interpretam, a interiorizam, a reelaboram e a definem histórica e culturalmente. (GROSSI, 1985, p. 378). Com efeito, «ao escolher o real que vai narrar e ao escolher o modelo narrativo em que o vai exprimir, um jornal (...) reduz a infinitude de realidades e significações a um pequeno conjunto que as representa. (MENDES, 1985: 80), Segundo esta perspectiva que percorre quer a psicologia americana quer a teoria crítica europeia (ADONI E MANE, 1984: 324-325), os media influem decisivamente nos «processos pelos quais qualquer corpo de conhecimento chega a ser estabelecido como realidade.» (BERGER E LUCKMANN, 1973: 13-14)
Ganharam uma dimensão importantíssima no que respeita ao estabelecimento de um significado comum e intersubjectivo acerca da vida quotidiana. Esta influência exerce-se sobretudo ao nível da relevância relativa dos temas em debate. Na percepção de Adoni e Mane, a relação dos actores com o horizonte social é organizada em termos de«zonas de relevância», um termo que provém da Fenomenologia Social e que diz respeito à maior ou menor proximidade em relação ao «aqui e agora» da esfera imediata de actividade dos indivíduos. De acordo com o interesse do actor em relação ao mundo que o rodeia este divide o seu horizonte social em várias zonas de relevância cada uma delas exigindo um diferente grau de preparação ou de conhecimento. Nesse sentido, é possível aceitar a existência de quatro zonas de relevância: uma primeira zona que se prende com a esfera de acção imediata do actor social e em relação à qual é preciso possuir conhecimentos claros e distintos; uma segunda zona de relevância que exige uma familiaridade menor; uma terceira zona relativamente irrelevante e que, nesse momento, não têm qualquer relação com os interesses nas quais qualquer mudança que se venha a verificar não influenciará a esfera de acção imediata do agente. (SCHUTZ, 1976: 124-5). Procedendo à concepção de três tipos ideais de actores sociais – o homem da rua, o perito, e o cidadão bem informado – o primeiro apenas se preocupará com as zonas de relevância intrínsecas que dizem respeito à sua esfera imediata de actividade; o perito apenas se debruçara sobre zonas de relevância impostas, no sentido em que se debruça sobre problemas preestabelecidos que dizem respeito ao seu campo de actividade, enquanto o cidadão bem informado encontra-se colocado num domínio entre o homem da rua e o perito, domínio este onde não existem fins pré-definidos, nem fronteiras totalmente no interior dos quais possa encontrar abrigo. O cidadão bem informado tem que encontrar o seu quadro de referência escolhendo o seu interesse. O que hoje se lhe oferece como absolutamente irrelevante pode amanhã parecer-lhe primariamente relevante ou vice-versa. (SCHUTZ, 1976: 130-31). É aqui que o problema da distribuição social do conhecimento se torna extremamente relevante para um plano de trabalho sobre a investigação sobre os media, na exacta medida em que estes possuem uma importância decisiva na transformação das nossas relevâncias. Ou seja, têm uma importância decisiva na selecção dos temas sobre os quais é importante ter opinião. Se a realidade individual subjectiva é organizada em termos de relevância, a realidade social é entendida ao longo de um continum baseada na distância dos seus elementos da vida quotidiana dos cidadãos. Os elementos sociais e os actores com que os indivíduos interagem em relações face e a face são parte das zonas mais próximas da relevância. As zonas mais remotas de relevância são compostas por elementos mais gerais, abstractos e inacessíveis à experiência imediata, como a «ordem social», (ADONI E MANE: 1984-326). Assim, os media podem proceder a uma distribuição social do conhecimento, proporcionando informação diferenciada que altera os respectivos sistemas de relevância.
Esta possibilidade remete-nos para uma redescoberta do poder do jornalismo que se traduz numa reavaliação do poder dos grupos, cuja exclusividade se questiona enquanto produtores promotor e legitimadores de decisões (FERRY, 1995: 61). A «teoria dos efeitos limitados», nomeadamente na sua versão mais conhecida do «two step flow», que têm em conta a importância dos grupos de referência e dos líderes de opinião, conquistara uma hegemonia relativa pelo que a ortodoxia fundada na evidência dos efeitos esmagadores dos media ter-se-á seguido outra, fundada nos inquéritos empíricos e técnicas de sondagem que procuravam demonstrar que as pessoas tendiam a expor-se, a seleccionar e a recordar de acordo com disposições preexistentes (CURRAN, GUREVICH e WOOLACOTT: 1990). Porém, nos anos 60 e 70, alguns investigadores reexaminaram os dados apresentados e concluíram que afinal, os estudos empíricos clássicos de Katz e Lazersfeld não haviam demonstrado que os mass media tinham pouca influência. Pelo contrário, revelaram o papel central dos media no reforço dos valores e atitudes. O entendimento em sentido oposto apenas se deveu ao facto de os seus trabalhos se tratarem de uma reacção contrária a uma ortodoxia anterior que definia a influência de um modo omnipresente.
Esta perspectiva dá-se a conhecer no plano da teoria dos media através do pressuposto essencial segundo a qual os media fixam não tanto a forma como pensamos mas os temas sobre os quais devemos pensar. Na tradição anglo-saxonica, traduz-se no quadro das pesquisas empíricas pelo paradigma do «agenda-setting». Na tradição alemã é possível vislumbrar uma preocupação semelhante, ainda que reformulada de um modo original em Elizabeth Noel-Neuman, nomeadamente na tese por ela defendida segundo a qual as pessoas tendem a orientar as suas opiniões por aqueles que elas crêm serem dominantes, o que está evidentemente ligado à influência mediática da comunicação pública. (NOEL – NEUMANN:1995) Na tradição francesa é compaginável encontrar fundamentos para uma teoria deste jaez numa concepção da violência simbólica, entendida como «o poder que consegue impor significações como legítimas, dissimulando as relações de força que são a sua força.» (BORDIEU e PASSERON: 23)
Nesse sentido, haverá alguns pressupostos que urge ter em conta:
1. Reitera-se que as mensagens de actualidade chegam aos receptores quase exclusivamente através do contacto com os mass media. (BOOKELMAN, 1983, 138-143).
2. Dá-se novo ênfase a fenómenos históricos que contribuem para a relativação das relações grupais. (BOOKELMAN, 1983, idem). As alterações verificadas na modernidade, no que diz respeito à percepção quer do espaço quer do tempo, exigem novas formas de pensar o encontro entre os agentes sociais.» Com o desenvolvimento dos meios de comunicação social, a interacção social foi parcialmente separada da ideia de partilha e de comunhão do espaço.» (THOMSON, 1995, 81-2).
3. Compreende-se que os temas publicamente institucionalizados são o objecto das relações interpessoais de formação de opinião. Os processos interpessoais são a continuação dos processos públicos de influência. Os diálogos carecem de reconhecimento geral a não ser que os media lhes disponibilizem uma arena pública e configurem os temas que são objecto de controvérsia em itens dotados de «noticiabilidade». (STRYDOM: 1999, 6).
4. Reforça-se a ideia de que é necessário investigar as relações entre grupos primários e as organizações formais. Nesse sentido, aprofunda-se o pressuposto segundo o qual mais do que estudar as modificações nas opiniões, haveria que estudar o papel dos media na formação de cognições, procurando as relações de causalidade entre a agenda mediática e a agenda pública. (TRAQUINA, 1995: 193-195) Numa perspectiva que relaciona, de forma, ainda mais veemente, o jornalismo com as práticas institucionais afirma-se: «a instituição dos media noticiosos é central no que respeita à capacidade das autoridades para apresentarem pretenções convincentes. Oferecem meios de persuasão através dos quais as autoridades de várias instituições podem tentar obter um consenso mais alargado para as suas preferências morais.» (ERICSON et al, 1991: 8)

A linguagem jornalística: a atitude natural e a formação de consensos.

Para além da importância da fixação de assuntos susceptíveis de serem objecto de interesse, a relação que o estilo jornalístico implica com a verdade implica outras consequências. O jornalista aprende o que Denis McQuail chama de «teoria da operatividade», referindo-se ao conjunto de ideias «que sustém os profissionais de comunicação acerca dos objectivos e natureza do seu trabalho e acerca de como obter determinados efeitos.» (MCQUAIL, 18-19). Vê-se confrontado com perguntas como sejam «do que é que o público gostará?», «que será eficaz?», «o que tem interesse jornalístico?» (MCQUAIL,1985: 18-19). Os jornalistas afirmam-se, pois, como «bricoleurs» que apreendem a regularidade em pequenos pedaços, com recurso a saberes práticos, em contradição com os teóricos que surpreendem e se debruçam sobre as grandes regularidades pretendendo, como desejava Platão, impedir esta mesma fragmentação da realidade. (PHILIPS, 1993: 329) Se esta é uma condição intrínseca ao desempenho da sua actividade, importa que se pense sobre os riscos que ela acarreta: o jornalista torna-se uma espécie de profissional de atitude natural, no sentido que Schutz dava ao termo, ou seja, uma atitude perante um mundo caracterizada por um interesse eminentemente prático, e pela fé ingénua na realidade e na permanência do mundo percepcionado. (SCHUTZ, 1976: 73) Schutz insistia em que o mundo social se interpreta em função de construções próprias do senso comum. Os objectos naturais e sociais dão-se por pressupostos, estabilizados na sua identidade, constituídos dentro de um processo de familiaridade e reconhecimento, possível graças a um repertório de conhecimentos disponíveis de origem social, formado e renovado na interacção quotidiana. A concepção ingénua da objectividade combinada com a preocupação evidenciada pelo estilo jornalístico em tornar as narrativas facilmente compreensivas e reconhecíveis faz os media correrem o risco de configurarem as suas narrativas no sentido de acentuarem o conformismo. Descrever-se-ia a realidade tentando adoptar, conscientemente, uma forma ingénua, pré-reflexiva, independentemente de qualquer questionação sobre a natureza dessa realidade. Esta atitude aproximar-se-ia do espirito de «Middle Town», ou seja, do conformismo ingénuo, lançando-o para o centro da formação do consenso social, no seu sentido mais irreflexivo e menos contrafactual: aquele de que se fala quando nos referimos perjorativamente à fabricação do consenso. O jornalismo pressupõe a existência de um conhecimento prévio, de pré-conceitos sobre o que é a norma e o desvio no seio de uma comunidade. Pressupõe uma comunidade de interesses e uma reciprocidade de expectativas que tornam o discurso inteligível e que suportam o próprio conceito de novidade – até porque o tipo de mensagem que o caracteriza visa precisamente tornar o cidadão comum seu receptor privilegiado e protagonista preferencial. O próprio conceito de actualidade, cerne da narrativa noticiosa, pressupõe um poderoso sentimento de pertença na medida em que o que é actual tem sempre subjacente um discurso sobre as regularidades vigentes. O jornalismo e a recepção das suas mensagens estão profundamente associado ao mundo da vida quotidiana, tentando-se mesmo que os profissionais conformem a sua linguagem de tal forma que ela obtenha o máximo de sintonia com os pressupostos culturais dos agentes sociais que se confrontam nesse mundo. Assim graças à sua identificação com o sentido popular o jornalista esforça-se em identificar quais os temas, pessoas e interesses para os consumidores da informação. (GARCIA, 1992: 154) Simultaneamente, tenta descobrir as formas de tornar a sua mensagem mais acessível, mais conforme às próprias competências linguísticas e culturais dos membros da audiência que funcionam como menor denominador comum. Nesta perspectiva vale a pena recordar uma descrição (crítica) do jornalês: o produtor de informação (...) suprimirá todos os dados susceptíveis de desviar o futuro leitor dos elementos narrativos «essenciais». Mas, melhor e mais importante , preferirá os sinónimos com menor número de caracteres, reduzirá o seu vocabolário às significações de base da sua língua materna (...), abolirá do seu texto toda a polisemia, preferirá o ponto final e a vírgula a formas mais complexas de pontuação, produzirá – mesmo artificialmente – parágrafos destinados a decompor em curtos «tempos» a sucessão de movimentos de leitura. (MENDES, 1985: 81) Como é que se consegue que o desejo de acessibilidade que qualquer media possui – e que se traduz numa generalização do conformismo? A questão é colocada de forma muito clara por Wolton: «O risco está, evidentemente, em confundir a dimensão comunicacional necessária ao confronto político com o consenso político, em confundir a aceitação de um código comum de comunicação com um consenso. Falar a mesma língua não implica, de modo algum, estar de acordo. (...) desde que (o espaço público) se alargou, com a tendência para tratar todos os problemas da sociedade no espaço público e, portanto, para generalizar esse vocabulário comum mínimo, tem sido grande a tentação para confundir parcialmente a linguagem comum, necessária à comunicação política, com o acordo sobre o fundo dos problemas.» (WOLTON, 1995: 182)


O jornalismo e os novos desafios do espaço público

A redescoberta do poder do jornalismo surge, curiosamente, ao mesmo tempo que a redescoberta dos poderes dos públicos. Hoje é impossível negar a importância da actividade jornalística na formação de uma concepção do mundo adequada aos grandes consensos e na construção dos sistemas de relevância dos actores sociais. Porém, simultaneamente não é possível deixar de abandonar os pressupostos clássicos de alguma teoria crítica para ter em conta uma visão mais complexa das situações de interesse, de conflitos e de poderes nas sociedades capitalistas avançadas. Como comenta Ferry, «os liberais já não tem mais o monopólio do pensamento pluralista, verificando-se mesmo uma dissolução das clivagens teóricas entre, de um lado, os pesquisadores conotados com a esquerda, orientados para aproximações holísticas e privilegiando o «macro», e do outro, as aproximações dissociativas e o interesse pelos problemas microssociológicos.» (FERRY, 1995: 55) Deixou de fazer sentido – pelo menos de uma forma como tinha sido imaginada pela ortodoxia adorniana – a concepção de Teoria Social que estava imanente nas formulações mais apocalípticas sobre as capacidades manipuladoras dos media. É evidente que o jornalismo tende a favorecer uma condição social da realidade com uma vocação ordenadora. Simplesmente, nas sociedades diferenciadas as regularidades já dificilmente possuem o mesmo sentido que tinha para os teóricos das sucessivas teorias críticas: com efeito, à medida que as acções e relações sociais são mais e mais coordenados através da comunicação, o poder torna-se cada vez mais dependente da aceitação de definições da realidade (STRYDOM, 1999: 16), as quais por sua vez podem depender de públicos conflituais (FRASER, 1992: 105). As ordens sociais implícitas, as normas ordenadoras nunca foram sujeitas a um pluralismo tão intenso como aquele que resulta da emergência de novas identidades sociais e culturais. Reconhece-se simultaneamente que novos agentes podem tomar a palavra para impor outras visões do mundo, dar a conhecer os problemas de «mundos da vida» que já não se apresentam tão homogéneos e unificadores, participar de forma conflitual na formulação da agenda, ou na visão que se constrói sobre a realidade que se visa representar. Nesse sentido, não nos parece incorrecto admitir a hipótese segundo a qual a própria consciência que se ganhou, no plano teórico e profissional, sobre o papel da linguagem acabou precisamente por permitir uma tentativa de repensar as relações entre os media e os públicos, no sentido de exigir uma maior participação. A reabilitação do público (STRYDOM, 1999: 2) que os estudos de recepção realizaram dando do espectador uma imagem activa não faz desaparecer a questão da influência, designadamente o facto de que o melhor espectador do mundo não pode interpretar senão aquilo que ele recebe. (FERRY, 1995) A noção de agenda faz cada vez mais sentido apesar dos elementos teóricos que introduziram as noções da polisemia do texto, de comunidades interpretativas activas, de resistência do espectador e da apropriação culturalmente variável da mensagem. (FERRY, 1995: 58). Nesse sentido, haveremos de concordar com Ferry que o facto de uma opinião pública tender a constituir-se com base no que a função da agenda à tematização limita desde já de forma estrutural as possibilidades da comunicação social. Porém, também teremos oportunidade de ripostar que a selecção não é definida apenas pela emissão. Ela é também igualmente exercida pelo público ao nível da recepção, pela escolha entre os programas oferecidos, pela interpretação que ele faz do texto escolhido, pela confrontação da interpretação com aquela outra formulada pelos restantes membros do público, e em especial pela possibilidade de os públicos, de acordo com uma lógica de redinamização e democratização da sociedade civil pretenderem eles próprios tomarem a palavra, fazendo chegar ao espaço público interpretações conflituais e afirmações em defesa do reconhecimento de identidades excluídas. Nesse sentido, a definição de realidade é afinal uma construção realizada não apenas pelos participantes mas também pela audiência. (STRYDOM, 1999: 17) Nesse sentido, um pouco por toda a parte ao lado do reconhecimento do poder dos media, surgem movimentos académicos e sociais – como «media literacy» - tendendo a educar as pessoas no sentido de acederem, avaliarem e produzirem mensagens mediáticas e que visam transformar os recipentes passivos de mensagens mediáticas em conhecedores habilitados das tecnologias relacionadas com os media, designadamente verificando a sua capacidade para manipularem audiências e introduzirem novos temas. (Resource Guide: media literacy, pages 6-7, Ministry of Education, Ontario, Canadá).
Neste movimento, que se faz sentir de forma generalizada nos Estados Unidos, mas também na Inglaterra, Escócia, Canadá, Austrália, Suécia e Espanha – cada vez se enfatiza mais a necessidade de saber que tipo de conhecimento, atitudes e competências se tornaram essenciais para se ser um cidadão na idade dos media. Ou seja, a liberdade de expressão, cuja defesa é uma exigência democrática incontornável, exige jornalistas e públicos bem preparados e exigentes. Se o sacrifício da liberdade de imprensa é impensável, esta tem de ser confrontada com a possibilidade de públicos mais exigentes e participativos.
A tomada de consciência desta realidade pode, deste modo, traduzir-se em duas consequências. Por um lado, verificar-se-á o aumento da resistência do público, o qual pode tornar-se cada vez mais interventor em relação ao monopólio dos mecanismos de produção simbólica. Esta como já vimos, parece ser uma dinâmica social que, apesar de todas as contradições, parece tomar novo fôlego: a exigência de educação para os media, a criação de observatórios de imprensa, a multiplicação de organizações que procuram reflectir sobre as consequências do poder dos media sobre a liberdade dos cidadãos. Por outro lado, parece evidente que quem escreve sobre o mundo tem que lançar um olhar, ganhando, nomeadamente, uma crescente consciência crítica sobre os seus próprios instrumentos profissionais. A complexidade crescente das sociedades exige outros saberes que permitam ultrapassar o digníssimo saber de experiência feito. Os problemas inerentes à legitimidade da profissão, as especializações crescentes, a mundialização da indústria cultural, a complexidade cada vez maior das sociedades e as responsabilidades sociais que incumbe à imprensa fazem com que o jornalista não reduza os seus saberes ao conhecimento do livro de estilo, à capacidade narrativa, ao uso do prontuário e ao domínio da língua portuguesa.































Para mim o Documentário é...

O filme documentário tem uma história recente. Ao contrário do que mais das vezes se afirma o documentário não nasceu aquando do cinema. As primeiras experiências com as imagens em movimento tinham apenas por objectivo registar os acontecimentos da vida quotidiana das pessoas e dos animais. Assim, o contributo dos pioneiros do cinema para o filme documentário foi o de mostrar que o material base de trabalho para o documentário são as imagens recolhidas nos locais onde decorrem os acontecimentos. Ou seja, é o registo in loco que encontramos no inicio do cinema que constitui a raiz em que assenta o documentário.
Foi apenas durante os anos 20 que se criaram as condições necessárias para a definição do género documentário, nomeadamente por Robert Flaherty (1884-1951) e Dziga Vertov (1895-1954). Estes dois confirmaram que é absolutamente essencial que as imagens do filme digam respeito ao que tem existncia fora do filme, ou seja, o cineasta deve sair para fora do estúdio e registar in loco a vida das pessoas e os acontecimentos do mundo. No entanto, a esta obrigatoriedade o documentarista pode responder de modos diversos. Os dois cineastas mencionados são disso exemplo: se o primeiro com «Nanuk», pedia às pessoas para se manifestarem para a câmara, para se representarem a si mesmas, o segundo com «o homem da câmara», pretendia captar as pessoas na sua vida quotidiana de preferência sem que se apercebessem que estavam a ser filmadas, para além disso, é a partir destes dois cineastas que se estabelece como absolutamente essencial que esse material ( imagens recolhidas in loco) seja submetido a uma reflexão. Este momento assume especial relevo na montagem do filme. Um documentário não é um mero «espelho da realidade» não apresenta a realidade «tal qual», ao combiarem-se e interligarem-se as imagens construídas in loco está-se a construir e a dar significado à realidade, está-se o mais das vezes não a impor mas a mostrar que o mundo é feito de muitos significados. Isto conduz-nos àquilo que se pretende que um documentário seja, que se exclua o voyeurismo ou mero sensacionalismo a favor do questionamento e da discussão através da construção de argumentos (em especial, e no meu entender, de modo visual - fazendo uso das imagens).
Resumidamente, Robert flaherty e Dziga Vertov mostraram que é possível existir um filme onde o registo do mundo e a reflexão desse mundo e/ou a reflexão desse registo ocupam um lugar privilegiado.
Mas, o documentário é um género com uma identidade própria que só conheceu as condições necessárias para a sua afirmação enquanto tal nos anos 30, com o movimento documentarista britânico e, em especial, com a sua figura mais emblemática: John Grierson (1898-1972). Aqui encontramos não só o reconhecimento do filme documentário enquanto género autónomo e distinto dos restantes filmes como uma afectiva produção de filmes designados por documentário.
Nos seus escritos, nomeadamente no artigo que data de 1932.34 intitulado «First Principles of Documentary» (in Forsy hardy, Grierson on documentary, London, Faber&Faber, 1979) Grierson discute e estabelece para o documentário características que o distinguem da restante produção fílmica. Antes de mais, diz tratar-se de um filme de categoria superior em relação à restante produção que também um material retirado da realidade. Nos «filmes de factos» («factual films») impera a mera descrição e exposição de factos.
Pelo contrário, no documentário, por ele definido como o «tratamento criativo da realidade», há combinações, re-combinações e formas criativas de trabalhar o material recolhido in loco.
Assim, o documentário trabalho os seus temas de modo criativo revelando algo sobre os fenómenos, no caso, os fenómenos tratados eram os problemas sociais e económicos vividos, na Grã-Bretanha, nos anos 30. As temáticas eram apresentadas segundo um determinado ponto de vista. Grierson fala-nos em «revelar a realidade do objecto tratado», em «criar uma interpretação». Essa revelação e interpretação que poderemos designar por ponto de vista, recai sobre as temáticas abordadas nos filmes e registadas in loco. Grierson entendia que os documentários deviam ter uma função social e pedagógica; deviam, ser, sobretudo, um instrumento de educação pública.
A produção da sua «escola» 88888(instalada nas film Units subsidiadas pelo governo) dependia do financiamento governamental pelo que era suposto que os filmes efectivamente produzidos justificassem o financiamento recebido. Os problemas sociais e económicos eram apresentados como sendo um mero momento de crise que o país estava a atravessar e que estava a ser solucionado pelo governo. Nos filmes eram apresentadas as soluções governamentais para cada um dos problemas abordados. A estrutura «problem-moment» dos documentários dos anos 30 tinha como principal característica o uso da voz em off, ao longo de todo o filme. Embora Grierson reconhecesse que para cada uma das temáticas que possam ser abordadas é possível organizar o material a ela respeitante de diversas formas e que a cada uma dessas formas correspondem abordagens ou pontos de vista diferentes, sobre um mesmo tema, esse reconhecimento inicial foi imediatamente esquecido pela força com que defendeu para o documentário uma função social.
Para além de defender um filme que tinha a obrigatoriedade de apresentar «uma interpretação» sobre a temática em causa, Grierson confere especial relevo ao papel do documentarista como autor criativo.
Estando o documentário afastado da mera reprodução dos acontecimentos, o autor do filme intervém de um modo criativo na concretização do filme, assume-se como artista. No entanto, esta intervenção é controlada pelo próprio Grierson enquanto produtor das Film Units (por exemplo, a BEM-Empire Marketing Board e a GPO-General Post Office) onde desenvolveu o seu trabalho no sentido de garantir o financiamento estatal. Na escola de Grierson a criatividade é pois, confrontada com o patrocínio governamental.
Com Grierson ficou definitivamente clarificado que, para chamarmos documentário a um determinado filme, não basta que o mesmo nos mostre apenas o que os irmãos lumière nos mostraram: que o mundo pode chegar até nós pelo olhar da câmara. É absolutamente necessário que o autor das imagens exerça o seu ponto de vista sobre essas imagens. É necessário o confronto de um olhar: o olhar do documentarista. É também necessário que o resultado final, ou seja, o documentário, seja o confronto entre esses dois olhares: o da câmara e o do documentarista. Para além disso, o documentário deve pautar-se pela criatividade quanto à forma como as suas imagens, sons, legendas ou quaisquer outros elementos, estão organizados.
Concluindo, podemos dizer que o documentarismo assenta em três princípios: a obrigatoriedade de se fazer um registo in loco da vida das pessoas e dos acontecimentos do mundo, deve apresentar as temáticas a partir de um determinado ponto de vista e, finalmente, cabe ao documentarista tratar com criatividade o material recolhido in loco, podendo, combiná-lo e re-combiná-lo com outro material (por exemplo, legendas, outro tipo de imagens, etc.).
Estes princípios que têm como suporte o passado histórico do documentário marcam a identidade do filme documentário; trata-se de um filme possuidor de um estilo de produção próprio e distinto da restante produção fílmica. No entanto, as características que a escola Grierson associou ao documentário e que não lhe eram de facto inerentes marcaram-no profundamente. O documentário ficou conotado como sendo um filme de responsabilidade social onde predomina a voz em off (esta é uma das razões porque o documentário é geralmente confundido com a reportagem) de tom sério, pesado e, consequentemente, vulgarmente entendido como maçador e aborrecido. Ao apresentar-se como tal apenas ganhou nos últimos anos nada mais que uma forte marginalização. Os estereótipos que lhe estão associados (por exemplo, supor-se que as problemáticas sociais são as temáticas mais adequadas para serem tratadas pelo documentário) assentam nacessariamente na herança que a escola de Grierson lhe legou.
O documentário deve assumir-se e ser entendido sempre como um ponto de vista, como um filme que apresenta e constrói argumentos sobre o mundo. Trata sempre aprofundadamente os seus temas, estando, por isso, vocacionado para promover a discussão sobre determinado tema, respeitar as aspirações, expectativas e motivações daqueles que filma (e não colocar-se, como fazia a escola de Grierson, acima dos temas dando apenas «voz» às soluções governamentais para os problemas concretos vividos pelas pessoas comuns). O documentário deverá pois, entrar na era pós-Grierson.
Outra questão importante e que é muitas vezes associada e discutida em documentário é o facto de lhe ser inerente uma certa reivindicação da evidência das suas imagens. Ora, no meu entender esta questão está antes de mais e no essencial, próxima do facto de ser necessário ao documentário reivindicar a obrigatoriedade de usar material recolhido in loco. No filme The Thin Blue Line de Errol Morris (1987) sobre Randall Adams que cumpre uma pena de prisão perpétua por um crime do qual afirma estar inocente, apresenta-se a arma do crime sob o fumo branco, ou seja, de modo quase pictórico. Ao apresentar-se assim descontextualizada, fica certo que o documentário não nos pode assegurar a autenticidade da evidencia da imagem. Podemos então concluir que o documentário para ser considerado enquanto tal não necessita de reclamar uma relação próxima com a realidade. Estamos perante um filme fundamental, um filme que solicita uma constante inovação e experimentação de formas e conteúdos, estes são-nos muito próximos. E, se as temáticas tratadas dizem à vida das pessoas e aos acontecimentos do mundo a sua forma depende directamente da criatividade do documentarista. Embora não seja aqui tratada há uma questão importante a ter em consideração no documentarismo, refiro-me ao facto de ser necessária uma atitude ética, essencialmente dirigida aos intervenientes do filme.
Por oferecer uma reflexão aprofundada sobre determinado tema, o documentário desencadeia um envolvimento crítico sobre esse mesmo tema e contribui, enquanto espaço de formas e conteúdos inesgotáveis, para uma melhor compreensão do mundo em que vivemos. O seu olhar não se reduz ao que é obvio, antes leva-nos a olhares diferentes sobre o mundo e permite-nos olhar o mundo de forma diferente. Por esta razão há um apelo ao debate de ideias, à reflexão e ao envolvimento critico confrontados que somos com experiências diversas, sejam elas sociais ou pessoais.
Tendo como ponto de partida o estilo do filme documentário enquanto género, poderemos perspectivar o seu desenvolvimento no sentido de se tornar um produto interactivo. Este será um de entre os possíveis desenvolvimentos para o documentarismo; no caso, trata-se da possibilidade de uma produção renovada e inovadora. As novas tecnologias estão aí, assim como a possibilidade de criação de novos produtos multimédia; para além disso, estamos perante de um novo produto multimédia que tenha como referencia, ou melhor, que embora se possa enquadrar no género documentário tenha como principal característica aquilo que distingue as novas tecnologias dos restantes media: a interactividade.
Após os anos 30, a revolução tecnológica que decorreu nos anos 50/60, e que consistiu na introdução e utilização de câmaras de filmar e som síncrono portáteis, é um dos aspectos mais importantes que se pode destacar na história do documentário. Esta nova tecnologia permitiu, por exemplo, a realização de entrevistas de rua (como é disso exemplar o filme de Jean Rouch intitulado «Chronique d'un Été», 1960. Este novo equipamento que substitui o uso dos 35mm permitiu uma maior e diversificada produção de documentários. Novas estratégias, novos estilos, novas formas ganharem vida. São disso exemplo marcante o « cinema directo» americano, também denominado «the-fly-on-the-wall» e o «cinema-verdade» também denominado «the-fly-on-the-soup» inicialmente desenvolvido em França. A diversidade resultante deste equipamento tem apenas um único motor a criatividade do comentarista. Uma criatividade que tem com o novo equipamento a possibilidade de se expandir. No caso, com o aparecimento do equipamento portátil tornou-se possível e oportuno desafiar e apresentar alternativas à omnipotente voz em off tão característica da escola griersonina, apostando, por exemplo, em dar «voz» ao cidadão comum.
Se a viragem tecnológica dos anos 50/60, que consistiu na portabilidade e sincronismo dos equipamentos, teve uma importância primordial na história do documentário, hoje somos testemunhas de uma outra viragem tecnológica, nomeadamente, a abolição do suporte analógico a favor do suporte digital, utilizado pelas tecnologias informáticas. Esta viragem não será de todo ignorada pelo documentarismo. Para o documentarista as tecnologias informáticas apresentam-se como mais um suporte apropriado para o «tratamento criativo da realidade».
Antes de mais, é essencial que a utilização das novas tecnologias seja alargada a diferentes áreas, e o documentarismo deverá ser uma delas. Acredito que daqui resultarão benefícios para o documentarismo. Este novo equipamento, à semelhança do que aconteceu na década de 60, requer e encontre-se disponível para a intervenção criativa do documentaria. E, embora possa ser demasiado determinista responsabilizar o surgimento de novas práticas com o surgimento do novo equipamento, trata-se sempre de um novo momento em que, pelo menos, se confirma que o documentário é um género potencialmente vocacionado para tratar os mais variados temas dos modos mais diversos. No entanto, o documentário permanece o mesmo, pois é-lhe já reconhecida uma identidade e estatutos próprios. Se com a anterior viragem tecnológica o documentário deixou de ser exclusivo no ecrã de cinema (35mm) para passar para o ecrã da televisão (vídeo) agora com a nova viragem tecnológica o documentário surgirá noutro ecrã: o do computador.













Globalização

COMENTÁRIO

Transmitir mensagens é para muitos uma forma quase espontânea de comunicar, é talvez uma das primeiras coisas que se faz, assim que se vem ao mundo. A sabedoria está em fazer com que essa mensagem seja verdadeiramente compreendida pelo receptor.
A diversidade com que, nos dias que correm, se pode fazer circular ideias, tem influência na forma como se comunica. O verdadeiro significado das coisas diverge e é absorvido consoante cada meio cultural, daí termos necessidade de encontrar signos e aplicá-los como ciências quase exactas, eu seja, criar certos convencionalismos linguísticos para que posámos comunicar de forma inteligível.
A forma como certas mensagens são direccionadas pode por vezes induzir o receptor em erro, se este, não adquirir alguma astúcia, numa sociedade em que, nem tudo o que é parece e por vezes o que à partida pode parecer clarividente, por outro lado, pode ter uma infinitude de significados. Neste sentido, quem é atingido pelas diversas formas de comunicar tem que possuir capacidade de decifrar mensagens e conhecer a verdadeira arte da comunicação. Deste modo, o receptor não pode adoptar uma postura passiva, sob pena de se deixar manipular pelos diversos meios de comunicação.
O que à partida nos pode parecer uma simples notícia onde os factos são claramente divulgados, na maioria das vezes, o que se observa são tentativas de manipulação e controlo do pensamento humano, no sentido de atingir objectivos à priori estipulados. Observa-se uma relação de causa-efeito perante a construção de personalidades. Na tentativa de explicar esta perspectiva, Noelle Newman aponta três características dos mass media: O conceito de acumulação, que consiste em efeitos que não são pontuais mas consequências ligadas à repetição contínua da produção de comunicações de massas. De seguida vem a consonância, que se associa ao facto das semelhanças existentes nos processos produtivos de informação serem mais significativos do que as diferenças, conduzindo assim a mensagens mais semelhantes do que dissemelhantes. Finalmente, o conceito de omnipresença diz respeito à difusão quantitativa dos mass media e ao facto de o saber público ter um carácter particular: É do conhecimento público que esse saber é publicamente conhecido.
Isto reforça a disponibilidade para a expressão e para a evidência dos pontos de vista difundidos pelos mas media e daí o poder que essa evidencia tem sobre aqueles que não formaram ainda uma opinião própria. O resultado final, é que muitas vezes a repartição da opinião pública se regula pela opinião reproduzida pelos meios de comunicação e se adapta a ela, segundo um esquema de conjecturas que se autoverificam.
Não obstante, as mensagens quando são produzidas não produzem elementos do mundo, mas produzem-nos, neste sentido, os receptores têm de saber decifrar alguns fragmentos de mensagens, para através de um elo de ligação estarem aptos para as contextualizarem e assim estruturarem um raciocino de acordo com as próprias condutas. Como por exemplo, uma mensagem que esteja directamente ligada às minhas actuais preocupações será evidentemente menos complexa do que uma que não faça parte do meu universo sensível. Deste modo, será muito mais fácil captar mensagens que façam parte das nossas realidades, assimilando-as e decifrando-as, do que, pelo contrário, ouvir uma mensagem que nunca apriori tenha sido conhecida, assim, a forma como a recebemos é feita com alguma complexidade porque não nos diz directamente respeito, logo, não desperta todo o nosso interesse.



Tendências do Jornalismo Contemporâneo

COMENTÁRIO

Se considerarmos a palavra público no seu conceito mais simples e generalista, estaremos a referirnos a algo pertencente ou relativo ao povo, que se faz diante de todos. Nesse sentido, existe uma acção por parte dos media para conseguir abranger todos os receptores possíveis.
Certamente que será esta a forma mais básica de abordar as relações entre emissores e receptores. O público é informado e influenciado por aquilo que lê e vê nos meios de comunicação. É certo que esta predisposição para a influência é mais notória por parte daqueles que não possuem uma opinião própria. O resultado final, é que muitas vezes a repartição da opinião pública se regula pela opinião reproduzida pelos meios de comunicação e se adapta a ela, segundo um esquema de conjecturas que se autoverificam.
Segundo McClure e Patterson, e depois de fazerem uma pesquisa sobre os efeitos do agenda-setting, concluem que a influencia causada nos receptores está condicionada pelas anteriores disposições dos leitores que são os destinatários das mensagens. Por outro lado, Shaw afirma não só que a pesquisa sobre o agenda-setting reconhece que os atributos psicológicos e sociais dos eleitores determinam a utilização política que eles fazem dos mass media - isto já no campo da propaganda - mas também que o agenda-setting reconhece a importância dos contactos interpessoais na determinação do imposto definitivo, do conteúdo dos mass media sobre o público. O agenda-setting utiliza os factores interpessoais para ajudar a explicar as condições em que os efeitos de agenda-setting são mais pronunciados.
Estamos perante um aspecto delicado. Por um lado, existe a vontade de inserir a problemática mais tradicional sobre os efeitos - percepção, exposição, memorização selectivas – explicitando a sua complementaridade; Por outro lado, existe também a dificuldade de construir uma teoria, sobre efeitos puramente cognitivos. Neste sentido, a teoria da dissonância cognitiva (Festinger, 1957) afirma que a presença simultânea de conhecimentos contraditórios entre si e dissonantes produz discordância cognitiva, o que provoca no próprio indivíduo uma motivação para eliminar essa discordância, de forma a criar um estado de equilíbrio. Entre as componentes contraditórias, tende-se a eliminar ou a transformar a menos central, a menos relevante para o indivíduo, ou a menos geral.
A hipótese do agenda-setting defende que os mass media são eficazes na construção da imagem da realidade que o sujeito vem estruturando. Essa imagem – que é simplesmente uma metáfora que representa a totalidade da informação sobre o mundo que cada indivíduo tratou, organizou e acumulou – pode ser pensada como um standard em relação ao qual a nova informação para lhe conferir o seu significado. Esse standard inclui o quadro de referências e necessidades, crenças e expectativas que influenciam aquilo que o destinatário retira de uma situação cognitiva. Neste sentido, a formação da agenda do público vem a ser o resultado de algo muito mais complexo do que a «mera» estruturação de uma ordem do dia de temas e problemas por parte dos mass media.
Como consequência, o estudo do emissor é imprescindível, uma vez que ocupa uma posição fundamental num tecido social, com a possibilidade de recusar e de seleccionar a informação em consonância com a gama de depressões que se exercem num determinado sistema social. Paralelamente à consolidação da centralidade social dos mass media e à mudança, lenta e não definitiva, da teoria comunicativa, o estudo dos emissores evolui, passando de alguns conceitos simples para articulações mais complexas entre variáveis que não dizem respeito à produtividade interna dos mass media. Esta evolução é caracterizada segundo duas abordagens; A primeira estudou os emissores sob o ponto de vista das suas características sociológicas, dos standards de carreira que eles seguem e dos processos de socialização a que estão sujeitos. Por exemplo, os produtores têm autoridade plena sobre os encenadores e os actores, no que diz respeito à realização, as suas decisões são, pelo contrário, subordinadas aos dirigentes dos network para quem os programas são produzidos e que, por sua vez, estão naturalmente vinculados às exigências dos patrocinadores e dos índices de audição. A segunda abordagem analisa a lógica dos processos pelos quais a comunicação de massa é produzida e o tipo de organização do trabalho dentro da qual se efectua a construção das mensagens. Tais determinações parecem decisivas quanto ao produto acabado.
Desta forma, e interiorizando estes conceitos podemos ter uma ideia de como os media imaginam o público e não o contrário, como à primeira vista nos parece mais evidente. Cria-se assim uma relação em que não se pode determinar quem se impõe a quem, mas só esse facto, levanta mais algumas questões que podem dar a resposta a Pierre Sorlin.

Tendencias do Jornalismo Contemporâneo

COMENTÁRIO

Uma sociedade dos mass media ou pós-moderna não significa uma sociedade mais iluminada, tal como Hegel, Marx ou Adorno vêm-na como algo que se apresenta de forma caricatural e perversa (como no mundo homologado, e talvez também «feliz» por meio da manipulação dos desejos, dominado pelo «grande irmão»). Mas a libertação das muitas culturas e das muitas weltanschauungen tornada possível pelos mass media desmentiu o ideal de uma sociedade transparente.
Um saber como o da antropologia não seria possível sem o facto elementar do encontro com civilizações e grupos humanos diferentes. Ou ainda para voltar à sociologia: também uma descrição da sociedade que não se identifique com a descrição, catalogação e comparação de regimes políticos. Observar-se-á que o aparecimento e desenvolvimento de uma sociedade civil distinta do estado não são, imediatamente, um fenómeno do qual se veja a relação directa com os fenómenos da comunicação e com os novos meios de informação disponibilizados pela moderna técnica. Porém, é possível mostrar que mesmo ao devir da sociedade civil, com âmbito diferenciado relativamente ao Estado, tem um papel fundamental a opinião pública, que está certamente ligada aos mecanismos da informação e da comunicação social.
Enquanto se vão discutindo ou filosofando os acontecimentos que nos rodeiam, quem vai ganhando terreno, no caos que se vai tornando a sociedade, são as grandes multinacionais que se prontificam de imediato, não só para satisfazer os seus desejos materiais, sempre tão vistos numa sociedade materialista, como em troca, lhes satisfazem os sentimentos mais profundos, sendo veículos para o que muitos não tinham pachorra para o fazer, como campanhas de solidariedade, fazendo entender que o indivíduo faz uma boa compra porque ajuda alguém, assim temos um problema de consciência resolvido – digo eu!
Por outro lado, as marcas pretendem e conseguem convencer os compradores que ao comprar aquele produto lhes dá um certo estatuto que antes não tinham, ao pensarem que se impõem pela diferença acabam por formar grupos sociais ou usar uniformes, onde andam todos vestidos de igual e têm os mesmos costumes porque foram todos convencidos da mesma forma. Seguir modas para muitos dá prestigio e estatuto. Aqui há que fazer uma distinção entre trade-marks e love-marks. Trde-marks tal como a Nike está na moda e todos querem usar para se afirmarem. Uma love-marks é por exemplo a adidas e a levis, marcas que devido ao seu passado criarem alguma credibilidade e apego nos indivíduos. Há também o exemplo da McDonalds que conseguiu entrar na China e com sucesso, iludindo os clientes de que também entrem em novas culturas, dando-lhes um novo conceito de liberdade ilusória, o que eles procuram não é a tão espectacular fast food, mas sim um estilo de vida americano, que a tantos agrada.
É claro que em toda esta problemática, as técnicas de marketing utilizadas são muito importantes. Quem dirige uma campanha tem nas mãos a capacidade de transformar um produto em love-mark ou deixar que ele se misture com os milhares já existentes, que na maioria das vezes o conteúdo é superior mas não tem embalagem, que é o que o cliente procura, porque a embalagem ainda é símbolo de qualidade. Como por exemplo, a polémica entre coca cola e pepsi. Alguém sabe o que há de melhor na coca cola que é uma love-mark? Claro que foram as campanhas publicitárias que durante anos foram geniais e hoje fizeram dela um símbolo americano, um estilo de vida ou uma moda que percorre o mundo inteiro.
Nos dias que correm o marketing para funcionar tem de oferecer nas campanhas publicitárias exactamente o que os compradores desejam, afinal à partida são feitas para quem os consome, e quem consegue chegar ao coração, às emoções, ao lado mais sensível do homem e ao mesmo tempo fazê-lo sonhar e criar um modo de vida, então, criou uma lovemark.



DOSSIER TEMÁTICO

DOENÇAS PSIQUIATRICAS


INTRODUÇÃO

Na verdade, a questão das emoções remonta mesmo a Aristóteles e teve, desde esse tempo, os seus respeitáveis estudiosos. Aristóteles advogava a moderação nas emoções e Cícero dissertou sobre os aspectos benéficos delas como garantia de uma vida equilibrada, segundo o ideal aristotélico. Mas é quase ilimitado o número de pensadores ocidentais que ao longo dos séculos reflectiram sobre o papel das emoções na existência humana: Espinosa, Pascal (quem não conhece a famosa frase «o coração tem razões que a razão não entende?»), Decartes (escrevendo sobre as «paixões da Alma»), David Hume (vendo a razão como escrava das paixões), Thomas Hobbes (que concebia as paixões como formas de apetite e de aversão), John Locke (que desenvolveu mesmo uma psicologia «sensacionalista»), são alguns dos citáveis. No mundo do pensamento analítico, a psicologia, ao tornar-se independente da filosofia, tomou a si o estudo das emoções. Nesta área, bastaria mencionar William James e os seus clássicos ensaios «What Is An Emotion?» e «The Sentiment Of Rationality» (1897), embora antes dele tivesse já surgido – inesperadamente para os menos avisados – um Charles Darwin com o seu famoso tratado The Expressios of the Emotions in Man and Animals (1872). No mundo da chamada «filosofia continental», os existencialistas e fenomenólogos dedicaram considerável parte da sua reflexão ao estudo das emoções. Kierkegaard, Nietzche (em O Crepúsculo dos Deuses, Nietzche afirma que «a função da razão é permitir a expressão de certas paixões a expensas a outras. A moralidade é um conjunto de princípios que restringe as paixões; uma moralidade bem sucedida é a que restringe apenas as paixões estupidificantes, que podem ser fatais, na medida em que arrastam a vítima com o peso da sua estupidez»), Husserl, Sartre, Heidegger, são apenas alguns dos nomes entre os mais conhecidos. Para trás ficou propositadamente Platão que, na República, sintetizava já maravilhosamente a tese de Goleman ao definir justiça nestes termos: «Não apenas força, mas força harmoniosa, desejos e homens caindo naquela ordem que constitui inteligência e organização... não o direito do mais forte, mas a harmoniosa união do todo.»
Nas últimas décadas a filosofia voltou a retomar a questão das emoções. Lembro-me de um filósofo da corrente fenomenológica, Robert C. Solomon, cujo livro The Passions. The Myth and Nature of Human Emotion (1976) conheceu larga difusão. Nele o autor defendia, em jeito de resumo da tese do livro, que «as emoções são a força viva da alma, a fonte da maioria dos nossos valores, a base da maioria das outras paixões». E mais adiante: «Diz-se que as emoções distorcem a nossa realidade; eu defendo que elas são responsáveis por ela. As emoções, dizem, dividem-nos e desencaminham-nos dos nossos interesses; eu defendo que as emoções criam os nossos interesses e os nossos propósitos. As emoções, e consequentemente as paixões em geral, são as nossas razões na vida. Aquilo a que se chama "razão" são as paixões esclarecidas, "iluminadas" pela reflexão e apoiadas pela deliberação perspicaz que as emoções na sua urgência normalmente excluem».
Mais recentemente, um importante sector da filosofia analítica abriu o flanco à interdisciplinaridade. O livro Explaining Emotions, de Amélie O. Rorty, penetrou largamente em diversas áreas de investigação e reflexão nas Ciências Sociais e Humanas. Mais preso ao diálogo com os filósofos analíticos, mas também dentro desta abertura ao estudo das emoções, enquadra-se o frequentemente citado The Racionality of Emotions, do luso-canadiano Ronald De Sousa, (1991). No campo da ética particularmente, a crescente atenção à problemática das virtudes tem levado a um ressurgimento de interesse por essa área da realidade impropriamente designada por irracional. (Em abono da verdade, tanto nas ciências sociais como na filosofia, foi sempre preferida a designação de «não racional» por se reconhecer não se tratar de nada necessariamente irracional.) São também variados os exemplos de livros nesse domínio. Recordarei aqui um especialmente significativo por o seu autor ser um nome respeitável no mainstream das ciências Sociais americanas – James Q. Wilson, The Moral Sense (1993). Wilson, por sua vez, recupera a obra The Theory Of Moral Sentiments, de Adam Smith (1976), e dela faz um importante ponto de partida para as suas teses.
Significa então tudo isto que é, afinal, muito recente o hiato estabelecido entre o mundo da racionalidade e o do não racional – foi mesmo no século XX que, com o positivismo lógico e a filosofia analítica, ele atingiu a profundidade que hoje se conhece. A. J. Ayer (1936) terá aberto consideravelmente o fosso ao afirmar que os argumentos de ordem moral, ao contrário do que acontece por exemplo com a teoria da gravidade, não podem ser verificados cientificamente e não passam portanto de «ejaculações ou comandos», «puras expressões do sentir» sem qualquer validade objectiva. Surgiram assim os emotivistas, com a sua teoria emotivista da ética, que viria a receber a sua expressão máxima nas décadas de 50 e 60, tendo a si associadas, entre os mais influentes, os nomes de C. L. Stevenson e R. M. Hare.
Concomitantemente, as Ciências Sociais, no empenho de «cientifização» dos seus diversos campos de pesquisa, foram-se afastando de toda a problemática que pudesse causar dano à sua instauração como ciências rigorosas. O território das emoções aparecia ora como areia movediça, ora de tal modo minado que tornava praticamente impossível dar cumprimento a um dos mandamentos básicos – medir e classificar factos. Em jargão de cientistas, terreno demasiado soft para inspirar credibilidade. Daí o afastamento para outros domínios mais sólidos como o do comportamento dos eleitores (no caso das ciências políticas), as experiências com ratos em laboratório (no campo da psicologia), ou ainda os estudos demográficos (na sociologia). Na psicologia especialmente, o predomínio do behaviorismo tenderá o aparecimento da sua perspectiva mais extrema com B. F. Skinner e o seu Beyond Freedom and Dignity (1971). Nos anos sessenta, o contexto político internacional não favorecia os estudos do indivíduo nem as suas abordagens dentro do paradigma do individualismo metodológico, preferindo-lhes o estudo da colectividade. Marx e os demais pensadores de esquerda foram os mentores do movimento alternativo ao status quo nas ciências sociais anglo-americanas. O indivíduo com os seus problemas comezinhos do dia-a-dia e, em particular, as suas dificuldades em se relacionar emotivamente com o outro, desde a família ao mundo do trabalho, tudo isso eram questões reserváveis à pop pssychology que ocupava as revistas de grande público e os suplementos de domingo dos jornais. Para tratamentos em mais profundidade, aí estavam os montes de volumes de How to... isto e How to... aquilo, dispostos a ensinar qualquer mortal a sistemática, metódica e infalivelmente fazer funcionar qualquer parte do corpo, ou qualquer indivíduo em qualquer espécie de situação.
Mas os sinais de mudança já estão no ar há uns bons vinte anos. De então para cá, multiplicaram-se indefinidamente, a ponto de surgirem crises profundas nas ciências sociais e humanas, acompanhando a crescente desilusão perante a engenharia cientifica do progresso social e individual – que de algum modo repetira neste século o optimismo do positivismo comteano oitocentista. De novo, ordem e progresso deixaram de ser um dado, o indivíduo reaparece como enigma escapulido das análises e sistemas. Como uma bola de mercúrio que se nos escapa dos dedos em minúsculas bolinhas para depois, instantaneamente, de novo se reunir num corpo único.
Foi pois neste cenário que começaram a proliferar os campos e subcampos de investigação do cérebro como a única fonte ao nosso alcance para a explicação de facetas fundamentais da vida humana. De novo, a série de que foram marcando avanços significativos é demasiado longa para referir aqui. E, no entanto, é nessa série que se enquadra aquela de que a maioria dos portugueses mais ouviram falar: O Erro de Decartes – Emoção, razão e cérebro humano, de António R. Damásio (1994). Ao demonstrar com êxito a impossibilidade de se separar a racionalidade das emoções, pois a ausência destas altera as decisões supostamente racionais, Damásio a construção de uma ponte agora bem mais solidamente construída nos seus alicerces e nas suas estruturas. Com efeito, o êxito deixou claro que está reaberta a estrada entre a razão e as emoções, agora porém com o aval da metodologia cientifica, hoje cada vez mais o melhor garante de que se não está a discorrer impressionisticamente ou simplesmente a fazer poesia ou literatura. O próprio Damásio escreveu: «o facto de distúrbios psicológicos, medianos ou intensos, poderem causar doenças do próprio corpo está finalmente a ser aceite, mas as circunstâncias e o grau em que podem fazê-lo permanecem por estudar. Claro que as nossas avós sabiam tudo isso: elas podiam dizer-nos como a dor, a preocupação excessiva, a ira, e tudo o mais eram possíveis de causar dano ao coração, provocar úlceras, destruir o corpo, e como nos deixavam mais vulneráveis às infecções. Mas isso considerava-se demasiado «popularucho», demasiado soft em termos de ciência, e assim era de facto. Levou imenso tempo para a medicina começar a descobrir que a base dessa sabedoria humana merecia consideração e investigação».
Entre as minhas anotações de leitura encontra-se ainda outra aparentemente estranha. Tem a ver com a caixa de Pandora e o papel da esperança e do optimismo nos empreendimentos da vida diária. Algumas páginas de Inteligência Emocional pareceram-me um caso de déjà vu, agora revestido em linguagem moderna. Foi um pouco como reler um discípulo de Henrri Bergson, Georges Sorel, William James e até o nosso Leonardo Coimbra, pensadores aonde Fernando Pessoa foi beber inspiração para a sua famosa Mensagem. O estado de decadência em que Portugal se encontrava na viragem do século XIX e principio do XX gerara um ambiente pessimista e de desesperança que só acentuava e prolongava a decadência. Pessoa propôs-se criar um mito forjado à volta da esperança capaz de galvanizar o povo português inspirando-lhe uma atitude construtiva de algo novo. Quem for ler os textos desses autores reconhecerá que as teses de Goleman mais uma vez se entroncam num rico e antigo filão onde os contributos são múltiplos. Para além da modernidade da formulação e roupagem no livro de Goleman, o impacte público por ele conseguido revela, porém, a novidade da existência de um terreno sequioso, e uma grande abertura de espirito a estas facetas da vida humana, não mensuráveis mas nem por isso menos reais.
A muitos leitores europeus ocorrerá estabelecer alguns paralelos entre o positivismo optimista e metódico de Daniel Goleman e o dos livros de Dale Carnegie. Não poderá negar-se que, subjacente àquele, existe uma confiança nas possibilidades de disciplinar a mente e de fazê-la ter um olhar positivo sobre as coisas de modo a, aos poucos, transformar a realidade. Mais do que a reedição de Carnegie, todavia, parece tratar-se do fenómeno que a expressão de Karl Popper tão bem captou e tão bem se enquadra na tradição americana do melhoramento metódico do mundo colectivo através da actuação individual – o social engineering. Quem quiser recuar ainda mais, verá talvez melhor através das lentes de Max Weber. O discurso de Goleman é, obviamente muito mais sofisticado do que nos tempos de Dale Carnegie ou de O. Sweet Marden, o que ajuda a aceitar mais facilmente essa faceta da maneira americana de estar no mundo. No cenário de leituras deprimentes, cínicas e desmobilizadoras que por aí correm, um pouco de sempre jovem voluntarismo e optimismo americanos não são de desperdiçar.
Mas nem tudo vai com optimismos e pensar positivo, como cada vez mais os próprios americanos vão reconhecendo pela experiência, ano após ano, de tentativas frustradas de reformas individuais e sociais. Foi, por exemplo, motivo de chacota nacional a divulgação de um inquérito em que se assessorava o grau de autoconfiança de estudantes do liceu quanto aos seus conhecimentos matemáticos, antes de entrarem numa competição internacional. Encabeçavam a lista. Vieram depois os resultados dos testes e não houve optimismo nem pensar positivo que os fizesse subir do último lugar da tabela. Os primeiros tinham sido os alunos coreanos que, em matéria de fé nos seus conhecimentos, estavam na cauda dos inquiridos.



ENTREVISTA

AS DOENÇAS QUE TEIMAM EM NÃO ACETAR!
«As doenças emocionais são escondidas pelo temor da discriminação». Esta frase polémica, foi chave para a investigação de uma situação desonrosa para os doentes do foro sensorial. Ela, serviu, também, para abrir portas a uma entrevista com o Psiquiatra, Professor agregado da Faculdade de Medicina do Porto e Professor de Psicologia médica, Dr. Rui Mota Cardoso, que começa por frisar que estas doenças não se ficam pelas complicações psicológicas ou físicas. Explicitando melhor, Mota Cardoso sublinhou que «as complicações podem ser comportamentais como o consumo de álcool ou de drogas, insónias ou até a agressividade. Podem ser até complicações sociais como a marginalidade, o obscentismo, os acidentes de trânsito ou de trabalho. O que é doença são todas as consequências do stress».

Susana Ribeiro – Então o stress não é doença?
Mota Cardoso – O stress em si é mais uma situação. Situação esta em que é exigido a um indivíduo que faça aquilo que ele não consegue fazer. Ultrapassa os seus limites e as suas capacidades naquele momento. Das duas uma, ou o indivíduo ultrapassa e consegue realmente crescer, o que é benéfico, ou o indivíduo não consegue, e então o stress é negativo porque o faz adoecer.
SR – O importante então, será combater o stress?
MC – Sim, mas o stress em si não é a doença, é a causa. É a situação. Todos nós estamos em stress, todos estamos em exigência, a chamada realização, simplesmente havia o bom senso daquilo que nos era exigido.
SR – Pode-se dizer que sempre houve stress, nos nossos antepassados, talvez com outro nome?
MC – Sim, há doutores até que consideram que a única coisa que difere o ser vivo do não vivo é o stress, é engraçado. Porque o stress é no fundo aquilo que o mundo exige ao ser vivo. Por exemplo, se eu estiver nu no Polo Norte, estou em stress, neste caso físico, porque estou numa temperatura a que me é difícil sobreviver. O que parece é que nos últimos tempos, o meio social, já não me refiro ao físico, exige às pessoas coisas cada vez mais intragáveis. Mais uma possibilidade de surgir a doença, e neste caso a doença é mais psicológica porque as exigências também são de nível emocional, a nível físico estão mais ao menos resolvidas.
SR – Neste sentido, as doenças causadas pelo stress são de resolução mais fácil do que as que são genéticas?
MC – Em alguns casos sim mas noutros nem sempre, por exemplo, a fim de considerar que um enfarte miocárdio muitas vezes é causado pelo stress, ou a úlcera gástrica, mas a nível psicológico há doenças que custam muito a tratar também, uma delas é o esgotamento, como lhe costumam chamar. O esgotamento é uma doença em que a pessoa perde, ou está convencida que perdeu as capacidades intelectuais e profissionais, além de se fazer acompanhar de uma anestesia local dos afectos, parece que não gosta de nada nem de ninguém e tem uma certa sensação de exaustão. Os esgotamentos a sério apanham principalmente pessoas que fazem aquilo que gostam, não são doenças de excesso mas sim de exaustão.
SR – Em média, quanto tempo costuma durar um tratamento a um esgotamento?
MC – Às vezes duram dois, três anos a curar. Como vê , é uma doença pesada do foro psicológico.
SR – Mas chegam a melhorar a cem por cento, ou ficam sempre com mazelas crónicas?
MC – Alguns casos dá para curar a cem por cento, mas outras vezes não, portanto não é uma brincadeira.
SR – Normalmente fica-se com tendências depressivas?
MC – Sim, ou então com grande astenia interpretada pelos doentes não só como astenia mas sim como a perda da capacidade intelectual, ou a capacidade de trabalho. Nós ao fazer-mos exames não nos parece que seja verdade, parece mais uma convicção do doente, que está tão abalado que se sente incapaz para tudo. De facto esta é uma doença muito debilitante e que apanha sobretudo profissões como professores, médicos, enfermeiros, jornalistas, e aquelas pessoas muito privadas que gostariam muito de fazer bem a sua profissão mas que se vão desiludindo, vai pela época dos 30 anos, época em que as pessoas já perderam os sonhos ou estão a perder.
SR – Mas também se verificam casos de esgotamentos na adolescência?
MC – Há sim, mas isso já é por causa de situações da própria adolescência.
SR – Ou mesmo até porque já nasceram pessoas depressivas?
MC – Mas estas não são consequentes do stress, algumas até são de cursos gerais e outras são genéticas.
SR – Sei de pessoas que normalmente têm as depressões na altura do Outono e da Primavera!
MC – São as tais depressões sazonais, que aparecem, como o Povo diz, no cair e no subir da folha, que para além de todas as perturbações que têm é também uma perturbação dos ritmos, e nós seres vivos temos ritmos, tal e qual como a natureza, por exemplo, temos o ritmo de acordar e de estar a dormir durante o dia, mas temos também ritmos sazonais, mesmo as pessoas que não são depressivas notam que na primavera e no Outono há uma diferença neles, pouco mais curtos, por exemplo, o ritmo cardíaco é um ritmo mais curto que um dia, bate 60 a 100 vezes por minuto. O nosso organismo tem ritmos e a doença depressiva é uma perturbação desses ritmos.
SR – Como se caracteriza um deprimido?
MC – Se reparar um deprimido acorda muito cedo, até mais do que custar-lhe a adormecer, adormece mas acorda atormentado demais.
SR – Também há casos em que lhes custa adormecer e depois ficam a dormir de dia?
MC – Sim , mas isso não é regra geral, de modo geral o problema é ao acordar e não a adormecer. Antigamente separavam-se as depressões em indogenas e reactivas. Indogenas, eram aquelas que se nascia com elas, ou acordava com depressões sem ter razão nenhuma, e reactiva era a pessoa que deprimia por problemas da vida. Hoje em dia é preciso um bocadinho a sobreposição, nas reactivas é preciso algo constitucional, e nas constitucionais é preciso alguma coisa que precipite. Na distinção clássica antiga, quem custava a adormecer era o reactivo, porque se deitava com as chatices do dia, mas o constitucional não, dormia com muita facilidade, mas com a doença, acordava muito cedo.
SR – Nestes casos de pessoas depressivas, estamos perante uma doença crónica?
MC – Sim e não. Quando nós falamos de uma doença depressiva grave, que antigamente chamava-mos melancolia, estamos a falar nestas depressões endógenas que na maioria dos casos é de facto constitucional para não dizer hereditária, nestas situações, não é que ela seja crónica no sentido de ficar para toda a vida, pode acontecer mas não é obrigatório, o que acontece mais é ser cíclica, ir embora e tornar a vir, circulo recorrente, mas classicamente os períodos sem doença são normais.
SR – E precisam de muitos medicamentos?
MC – Precisam, precisam de dois tipos de medicamentos; um, o próprio medicamento durante a fase da depressão. A depressão é extremamente dolorosa, a pessoa sofre muito, é claramente a doença que mais se sofre, e por outro lado mais mal respeitada porque ninguém acredita, mas para além de sofrer há sempre o risco de suicídio porque o sofrimento é tão grande que parece que a única coisa que alivia é desaparecer.
SR – Há sempre a sensação de que à volta as pessoas não os compreendem!
MC – Primeiro há a sensação insuportável de que não vai aguentar mais um dia, muito menos uma noite e ainda menos uma hora. Depois a incompreensão da família. Este problema afecta mais as mulheres, mais um estigma para a mulher. Em casa normalmente o que os maridos lhe dizem é: se tivesses tanto para fazer como eu, não te queixavas disso, os filhos chateiam-se em ver a mãe assim e a senhora fica numa doença aflitiva, bastante dolorosa, que lhe atinge mais do que a tristeza , atinge-lhe a capacidade de fazer coisas, está como se tivesse «paralisada» das capacidades de decisão, vontade e o meio a não perceber nem a ajudar, inclusivamente os próprios médicos que nem baixa dão, porque acham que aquilo com um bocadinho de passeio até vai lá. Um dos principais pontos da doença da depressão é atingir a vontade. Uma doença do estômago tem de atingir a digestão, ora uma doença cerebral tem de atingir o que o cérebro faz, uma das coisas que é mais atingido, é precisamente os mecanismos de vontade, decisão e de interesse. Pôr uma pessoa destas no inicio do tratamento ou mesmo antes do tratamento a passear é a mesma coisa que a porem a saltar em cima de picos.
SR – Então, de que forma é que a família deve lidar com a doença?
MC – Primeiro de tudo, respeitar a doença, depois ajudar o doente a tratar-se, porque nem sempre os doentes se consideram doentes, por questões de vergonha.
SR – Era aí que eu queria chegar. Como é que se faz para que as pessoas que nos rodeiam, amigos e colegas de trabalho se apercebam de que têm de fazer isso?
MC – As pessoas aderem mais facilmente a deixarem ajudar-se se sentirem que as pessoas que estão ao lado fazem duas coisas; uma é ouvir, e um depressivo não é agradável de ouvir, uma vez que são agressivos, a chamada agressividade passiva, é preciso força de vontade. A segunda coisa, a pessoa tem que se sentir sentida, é mais que compreendida, ou seja, se estiver aflita, a pessoa mais do que a compreensão precisa que sintam o que ela está a sentir, isto é fundamental. Só assim começam a ouvir as sugestões dessa pessoa. O terceiro passo é destruir de vez a ideia de que isto é uma doença da alma, da moral, senão leva-nos a dizer que isto afinal não é uma doença, mas sim uma fraqueza.
SR – Definitivamente, trata-se de uma doença, e grave?
MC – É uma doença grave e uma doença psicossomática, tanto apanha o psíquico como apanha o soma. Por exemplo, ao contrário do que a gente imagina o corpo todo está a reagir, um psiquiatra faz um diagnóstico de depressão olhando para a cara da pessoa, porquê? Porque fica sem expressão no olhar, muitas mais curvas na cara, as pálpebras ficam baixas, a própria cor da pele fica esquisita, e só quando a tristeza encarna é que começa a depressão e aí quando vai para o corpo é que começa então a perda do apetite, do desejo sexual, perda do sono, perda de vontade de fazer coisas, perda da força muscular, perda de interesse, às vezes fica-se com prisão de ventre, todo o organismo muda. Nas depressões mais graves até dizem coisas que as pessoas não entendem, já tive doentes que me diziam que sentiam as pernas a chorar, parece uma loucura. É uma doença psicossomática que tanto atinge a parte mental como a física e como tal tem de ser tratada como outra doença qualquer.
SR – As pessoas à volta é que fazem com que se sinta vergonha de ter esta doença?
MC – É verdade. Eu sou psiquiatra há quase 50 anos e graças a Deus assisti a uma grande abertura. Há 30 anos atrás quem tinha depressões tinha de andar aí bem caladinho senão estava «lixado», mas hoje ainda não é assim com essa facilidade, olhe que hoje uma pessoa deprimida é melhor calar, eu ainda aconselho os meus doentes a fazerem isso, porque eu nunca sei se o patrão os vai tratar da mesma maneira, ou se os estudos vão continuar da mesma forma.
SR – Parece-me que essas pessoas são muito fortes!
MC – Claro que sim, não tenha dúvidas. As doenças psicológicas como em qualquer doença, significa fragilidade numa coisa, mas em todo resto são muito fortes.
SR – São capazes de aguentar muitas coisas.
MC – Sim, aguentam isso e têm atrás de si uma série de sofrimentos que muitos outros ditos normais, ai deles que tivessem passado por isso, mas isso ninguém conta só vêm o resultado final.
SR – Mas também não se deve falar muito do facto deles estarem doentes?
MC – Isso não, é como outra coisa qualquer que se está à espera que passe. A última coisa a fazer, aí sim, ajudá-la a dar os passos de sair, passear e essas coisas, mas só quando ela já sentir uma pequenina vontade para sair.
SR – É perfeitamente normal no inicio do tratamento sentirem muita sonolência e necessidade de descansar?
MC – Muita, sobretudo até porque a maioria dos remédios dá sono, felizmente agora até temos remédios que não dão tanto sono. Antigamente, nós só tínhamos para tratar isto, as chamadas curas de sono, que era pôr as pessoas a dormir. Hoje não pomos as pessoas a dormir mas damos remédios que dão algum sono. Há a necessidade de sedar um bocado ruminações de pensamentos que são sempre muito negros, muito negativos, para ver se as pessoas mudam de ideias e não estão sempre a pensar nessas coisas.
SR – No sentido de pôr as pessoas a dormir, hoje em dia já não há internamentos com tanta frequência?
MC – Não, são muito menos, porque há uns 40 anos para cá começaram a surgir os antidepressivos que têm facilitado o ambulatório nestes casos. Quase não precisamos internar os doentes, podem ser tratados em casa com a ajuda dos antidepressivos. Só internamos em caso de depressões em que há o risco de suicídio e mesmo assim se temos a certeza que em casa há um controle apertado também não internamos estes doentes. Outra maneira que há para internar é quando os remédios não dão efeito. Apesar dos bons remédios que existem sabemos de 20 a 30 por cento de casos onde os medicamentos não fazem efeito. Isto quer dizer que nestes casos passamos para tratamentos mais pesados, ou mais clássicos, passamos a dar os remédios em soro. Nos casos ainda mais graves, que são casos de depressão enorme, onde a ideia de suicídio é gravíssima, nós ainda recorremos aos choques eléctricos. Para lhe dar uma ideia, quando eu comecei com psiquiatria, deviam-se dar no meu sector, uns cinco ou seis electrochoques por semana, hoje deve-se fazer um por ano.
SR – O electrochoque dá realmente bons resultados?
MC – Em casos aflitivos, nós às vezes temos casos aflitivos, alguns doentes parece que estão em coma, já nem se mexem, se melhorarem matam-se imediatamente, e em alguns casos damos-lhe um electrochoque e eles melhoram significativamente.
SR – Já lhe aconteceu dar um electrochoque e não acontecer absolutamente nada?
MC – Sim. Há casos em que não dá efeito nenhum, porque sabe que no meio de tudo o que é medicina, há casos em que a medicina não faz nada.
SR – O electrochoque também pode de alguma forma prejudicar o doente?
MC – Repare, o electrochoque tem por trás dele duas coisas gravíssimas. Uma é que antigamente era feito sem anestesia, porque como nos hospitais normais não havia anestesistas, para não correrem riscos os choques eram dados sem anestesia, para o doente talvez não fosse muito grave porque o electrochoque faz perder a memória, por outro lado, provocava um ataque epiléptico, isso também já não se faz porque hoje em dia o indivíduo não sente nada, e há um remédio que tira a força dos músculos, portanto o indivíduo já nem tem ataque epiléptico nenhum. Para quem está de fora não há diferença entre um choque eléctrico e uma anestesia para tirar o apêndice. Tem uma história terrível do passado, não só pela sua forma violenta, mas também por ser usado «a torto e a direito», muitas vezes sem ser preciso e não há dúvida que nós psiquiatras temos que pedir desculpa por isso.
SR – Morre-se de depressão?
MC – Morre, em casos extremos morre, primeiro por suicídio.
SR – Em casos de corpos que estão praticamente a «vegetar», acabam por morrer?
MC - Morrem, mas eram muito mais frequentes quando não havia remédios, a coisa evoluía por ali adiante e não tínhamos nada para fazer.
SR – Então morre-se de sofrimento?
MC – Morre-se, e de amor também. Não por consequência, vai-se morrendo. Como lhe disse ao bocado as depressões também apanham o organismo, o colesterol sobe, as tenções ficam mais frágeis, começa a haver dificuldades de batimentos cardíacos, morre-se por uma causa orgânica. Por exemplo, se separar uma criança da Mãe entre os oito meses e os 18 meses, suponha que a Mãe morreu e a criança foi internada, havia casos em que a criança morria de amor por falta da mãe e os que não morriam ficaram com sequelas.
SR – Os antidepressivos, felizmente descobertos, não servem então como costumam dizer, para «tapar o sol com a peneira»?
MC – É falso, é verdadeiramente falso para as depressões, para outras coisas podia ser. É verdade se for, por exemplo, o stress, a ansiedade, se for no sentido em que uma pessoa precisa de aprender a resolver os seus problemas e se estamos apenas a diminuir o sofrimento que ela tem com calmantes, váliuns, etc. estamos «a tapar o sol com a peneira», primeiro porque não estamos a tratar nada, estamos só a abafar os sintomas que a pessoa tem. Mas a depressão não é isso, a depressão é uma doença que tem de ser tratada e não é verdade que o antidepressivo seja como uma aspirina para baixar a febre, um antidepressivo é contra a depressão. Mesmo quando a depressão pode ter razões de chatices de vida, de luta, não há dúvida que há zonas cerebrais onde há alterações bioquímicas e não há dúvidas que os remédios, é nessas zonas que vão actuar modificando essas alterações bioquímicas.
SR – Ajudam as pessoas a lutar!
MC – Ajudam as pessoas a sair da depressão, porque as pessoas quando estão deprimidas nem forças têm para lutar, e depois de sair da depressão vão então à luta.
SR – No caso da esquizofrenia as coisas complicam-se bastante?
MC – A esquizofrenia é a maior doença que existe na psiquiatria, é o nosso cancro. Aqui graças a Deus que há remédios, porque antes de haver remédios era muito complicado.
SR – Esses remédios são direccionados só para a esquizofrenia?
MC – Só para a esquizofrenia, são os chamados esferotiazinas e agora os antipsicóticos animicos, estes são muito melhor tolerados que as esferotiazinas, são muito caros, felizmente o estado paga-as por inteiro, mas constou-se que este governo e a nossa ministra estavam a tentar fazer os doentes pagar, o que a meu ver isto é muito grave, se há doença que não pode prescindir dos medicamentos é a esquizofrenia, tendo em conta que também são remédios muito caros.
SR – Quais são, mais concretamente os sintomas da esquizofrenia?
MC – É variável, é mais fácil descrever os sintomas quando eles estão no inicio do que quando estão já instalados. É por isso, que nós temos alguma dificuldade, porque quanto mais cedo diagnosticamos, melhor tratamos. Ao principio é difícil de dizer se a pessoa está ou não está em esquizofrenia, mas, o que caracteriza normalmente o doente de esquizofrenia, é serem realmente pessoas muito inteligentes, de qualquer modo, têm um temperamento um pouco reservado e introvertido, não são pessoas muito sociáveis, são mais dados à leitura e à vida interior do que à festa e à vida exterior. Têm dificuldade de enfrentar o exterior e de uma forma abrupta, começam a ter uns comportamentos muito esquisitos. Por exemplo, de repente passam uma noite sem vir a casa mas, quando nos aparecem, estão normais. A partir daqui começam a ter algum desleixo pessoal e uma diminuição franca do rendimento escolar, quando ainda estão a estudar, alguns acabam mesmo por «chumbar», vestem de outra forma, a barba por fazer, etc. Quando a doença começa a piorar as pessoas começam a entrar num mundo de desconfiança – alguma coisa não está bem, algo está para acontecer, depois já os outros sabem menos ele, a determinada altura descobrem o que é – é o delírio. Então é assim – tenho uma missão para cumprir, ou tenho um segredo e toda a gente o quer descobrir – agora é que é fácil de diagnosticar, com o delírio ouve-se quase sempre vozes, vozes complicadas.
SR – Vozes claras como as nossas?
MC – Claríssimas, com tal clareza que é impossível explicar-lhes que não são vozes, eles ouvem-nas por trás da parede, é o vizinho do lado, então inventam um aparelho e colam à parede para ouvir, e ouvem dizer: Tu és um «maricas», não és homem nem és nada, vais matar não sei quem. Mas há coisas ainda mais bizarras que é ouvirem o pensamento, pensam-no e ouvem-no a seguir e às vezes até ouvem antes de pensar.
SR – Tem sido muito difícil encontrar o tratamento que mais se adequa?
MC – Claro que sim! Depois disto vem o máximo que é; qualquer pensamento, qualquer acto ou sentimento, não é ele , é alguém que o faz por ele, é então a perda total de autonomia. Em 1956, felizmente, foi inventado o primeiro remédio para tratar isto. Neste momento se apanharmos um doente no inicio da doença ele pode ficar praticamente novo, por exemplo, não estuda mais, mas fica bem. Outras pessoas ficam também bem, mas em relação à capacidade de sentir e tomar decisões, ficam vazios, os chamados sintomas negativos. Estes sintomas negativos são aqueles que os antipsicóticos anímicos mais actuam, o que quer dizer que se até aqui tínhamos remédios para os positivos todos «esquisitos» e não tínhamos nada para os negativos, hoje começamos a ter, acontece que são muito caros e ainda por cima são um monopólio porque a empresa que descobre, é como descobrir o petróleo, ainda não houve outra que descobrisse uma ao lado. Nós tínhamos um grande problema porque o estado não comparticipava estes medicamentos, imagine agora que um doente destes normalmente não ganha, as famílias não são todas ricas, apanha todos os estratos e há um remédio que custa 40/50 contos por mês. Até que, já neste governo, mas a anterior ministra da saúde, fez uma lei a tornar gratuito qualquer medicamento para doenças crónicas. Há pouco tempo, esta nova ministra pensou em acabar com esta lei, deixando de comparticipar a 100, passando para 40 por cento, havendo um certo levantamento dos psiquiatras e até mesmo das famílias dos doentes. Eu compreendo que é uma questão difícil para a ministra porque estes remédios são caríssimos e como sabe a saúde está cada vez mais cara, mas provavelmente há outras doenças onde se poderia poupar, pondo então esses remédios mais caros. É o caso por exemplo dos antibióticos, podia-se dizer que em determinadas doenças os antibióticos fossem mais caros, porque de um modo geral uma pessoa está doente oito dias, bem podia pagar um antibiótico por inteiro, em solidariedade com doentes crónicos que têm de tomar medicamentos toda a vida. Mas o despacho ainda não foi posto a funcionar pela ministra, mas poderá vir a pô-lo e será um problema.
SR – Neste sentido e com estes medicamentos, cada vez há menos doentes a necessitar de internamento?
MC – É e nesse aspecto, estes doentes é que nos enchiam os chamados hospícios, ou hospitais psiquiátricos, hoje em dia estamos a fechá-los à custa dos remédios mais nada. Estamos a fechar o Conde de Ferreira, estamos a fechar coisas que nem viam nem nunca queira ver, que eram os velhos hospícios no meio do monte, ali para os lados de Amarante, em sítios um bocado degradados, nem vale a pena falar disso.
SR – E não tinham condições?
MC – Nenhumas. Havia alguns que no Inverno os doentes não saíam da cama porque a água estava muito alta.
SR – Isso ainda ia agravar o estado deles?
MC – É evidente. Estamos a fecha-los mas olhe que é à custa dos remédios, não é à custa de mais nada, em termos psicológicos quase que não há tratamento para os esquizofrénicos, há remédios.
SR – Nem um internamento?
MC – O internamento é para os macaquietos para eles não partirem tudo e não se matarem. Mas também estamos a dar altas, a mandar as pessoas para casa.
SR – Porque os hospitais não reúnem condições?
MC – Não é por isso, é porque já não são precisos, graças a Deus! Nós só precisamos dos hospitais para as coisas agudas, para a fase inicial, enquanto as pessoas estão muito mal, depois começa-se a tratar, as pessoas ficam mais ou menos bem e podem ir para a vida.
SR – Acha que alguns psiquiatras receitam antidepressivos sem serem estritamente necessários, por questões de contractos com algumas multinacionais?
MC – Olhe, vou-lhe falar com toda a sinceridade, há gente corrupta em todo lado, como sabe, não creio que na nossa classe seja mais que na outra, com sinceridade, e as pessoas que eu conheço têm algum cuidado em não pisar o risco sobretudo ao nível da imoralidade e sobretudo se falarmos a nível da psiquiatria eu acho que não há esse risco.
SR – Até porque é muito perigoso para os doentes que isso aconteça!
MC – É perigoso e sobretudo na psiquiatria não me parece que haja esse risco. O que se pode pôr a discussão, e muitas vezes se põe é noutra coisa, é onde é que termina a ajuda ou não ajuda dos laboratórios da nossa própria formação. Como sabe nós psiquiatras só nos podemos formar de duas maneiras, ou lendo livros ou indo a congressos e não há pagamento dessas coisas para nós nem o desconto disso nos nossos impostos, se eu comprar um livro de psiquiatria posso descontar de facto, mas se eu for a um congresso não posso, mesmo que possa descontar alguma coisa, tem um limite e os limites são ridículos, são 100/200 contos. As empresas e os laboratórios tendem a fazer a sua propaganda pagando-nos, sobretudo àqueles mais conhecidos, as suas viagens aos congressos. É aqui que se levanta a questão que é: Há pessoas que aproveitam o congresso para aprenderem mesmo e há pessoas que aproveitam o congresso para ir passear, é aqui que se pode dizer que às vezes alguém pisa o risco, não é por receitar mais ou menos, pelo menos quanto eu sei não é, pelo menos na psiquiatria não é, só que algumas pessoas e poucas, pisam o risco. Havia também um risco antigo que agora acabou com a nova lei que era muitos aproveitarem para levar a mulher, isto é, eles iam de facto estudar mas as mulheres iam passear, mas às vezes arranjam-se uns processos para disfarçar um bocadinho isso. Se me perguntar, há corrupção aberta, eu acho que não há, há depois o jogo do limite entre o que é aceitável e o que não é aceitável. Por exemplo o que se passou na Figueira da Foz, até para nós foi um espanto, nem acreditávamos que fosse possível, é marketing demasiado e deve ser altamente punido, mas não é vulgar.
SR – Quando lidamos com pessoas da minha idade ou da sua, é mais fácil tratar um doente, porque há sempre a família que ajuda, mas quando se trata de idosos reformados, é mais complicado, o estado não apoia estes casos?
MC – Não é não apoiar, o estado faz aos idosos o mesmo que nos faz a nós, um bocado pior, o problema é que os idosos ganham muito pouco.
SR – Mas os idosos depois também têm outros problemas como neurologia...
MC – Muitas coisas, há neurologia, há as atrozes, os músculos e é por isso que muitos doentes gastam a reforma por inteiro na farmácia. Eles vão comprar os remédios para estas coisas todas e o estado comparticipa mais até do que na nossa idade, mas o problema é que eles ganham muito menos, o que é agravado pela utilização de remédios que não são precisos para nada. Também há remédios que não fazem nem bem nem mal, como os remédios para abrir a memória e não há remédios para abrir a memória e também é dinheiro que gastam. Não há ninguém que chegue à reforma sem ter uma doença crónica e que gaste dinheiro.
SR – E aqueles doentes que não têm ninguém para cuidar deles, existe algum centro onde eles possam estar?
MC – Há muito poucos, mas comparado com uns anos atrás há muitos, mas continuam a ser poucos comparado com o numero de pessoas que precisam e quem tem feito mais esforço nisso, até têm sido as autarquias, sobretudo as pequenas tipo Juntas e Juntas rurais, onde o idoso pode ir o dia todo e durante o dia não só se distraem, convivem e outras coisas como o apoio médico e psicológico.
SR – E pagam por lá estar ?
MC – Há sítios, que eu até conheço alguns, que são extremamente louváveis, porque as pessoas não pagam para ir para lá, sítios muito nobres de caridade social, inclusive alguns até vão a casa dar banho aos doentes, só que não dão onde dormir que é a parte mais complicada, mas comparado com o que o País precisa é muito pouco. Há de facto um esforço de estado em sermos um pais do primeiro mundo e ir regularizando isso, só que nós partimos muito atrasados.
SR – Não se nota, por parte do governo, o espirito de estar a investir num «saco roto», do estilo, eles vão morrer, não vala a pena gastar dinheiro?
MC – Não, por parte do estado, das autarquias e algumas instituições de solidariedade nacional, não se nota, noutros sítios nota-se, quase do tipo, é bom ali ter morrido um, quero pôr lá outro.
SR – Em casos de assassinos e marginais, quando fica provado que têm problemas emocionais, são levados para onde?
MC – Nestes casos quando se consegue provar que o indivíduo, quando cometeu o crime, não estava consciente do que estava a fazer, como por exemplo, esquizofrénicos e atrasados mentais, se for provado em tribunal, o indivíduo é considerado inimputável, isto quer dizer por lei que a pessoa não é condenável, mas se o indivíduo for considerado perigoso, o juiz condena-o a um internamento, se não for considerado perigoso é posto em liberdade.
SR – Há um sitio especifico para onde vão estes indivíduos?
MC – Há, todos os hospitais psiquiátricos têm uma zona de inimputáveis.
SR – Mas não há um local tipo cadeia para eles?
MC – Há um sitio tipo cadeia, mas é diferente. Por exemplo, um indivíduo considerado imputável, se durante o internamento tiver problemas psiquiátricos, há um hospital psiquiátrico na cadeia, como por exemplo, em Santa Cruz do Bispo, que tem uma colónia penal para doentes mentais e só doentes mentais. Em todo o País há dentro dos hospitais, mas numa enfermaria diferente, a chamada zona dos inimputáveis.
SR – Dentro deste espaço, funcionam bem uns com os outros ou costuma haver alguma agressividade?
MC – Parece haver uma maior agressividade entre eles mas controlável, de qualquer modo estes doentes não estão condenados à prisão perpétua, a qualquer momento podem sair.
SR – Para terminar, gostava de saber se ainda há doentes voluntários, que vão ao hospital fazer terapia e vêm embora quando querem?
MC – Há, isso é que seria o ideal, mas só acontecerá a partir do momento em que se desistir, de dramatizar a doença, como noutra doença qualquer, a pessoa sente-se doente e procura ajuda, quando estiver melhor tem alta e vai para casa. Já há muitos casos assim e é para lá que caminhamos. Defendo isto, é preciso acabar com o estigma da doença mental. Este ano foi declarado o ano da doença mental, devíamos aproveitar este facto para encarar esta doença com a mesma naturalidade que encaramos tantas outras.



REPORTAGEM

"VOANDO SOBRE UM NINHO DE CUCOS"

Muitas são as doenças psiquiátricas, e poucas são as instituições que dão guarida a pessoas com diferenças. Todos sabemos que elas existem mas enquanto são problemas dos outros vive-se bem, as dificuldades aumentam quando é connosco, e o que nos oferecem são instituições centenárias, com condições pouco distintas onde um ser humano é colocado à espera de melhoras quase nunca vistas.
O Hospital Conde de Ferreira é uma instituição centenária, que dá abrigo a 480 pessoas «diferentes», para uma sociedade que não está preparada para algumas diferenças que podem interferir na harmonia social. Este hospital já foi um dos maiores da cidade do Porto e mesmo o único preparado para estas doenças. Já estiveram lá internadas mais de 1000 pessoas. Com a abertura do Magalhães Lemos, o Hospital foi ficando esquecido e por falta de condições esteve para ser fechado. Lá dentro chamam-lhe uma decisão política, mas a realidade é que muitos iam ficar sem sítio para viver, foi então que a Santa Casa da Misericórdia resolveu voltar a tomar conta de um hospital que hoje se está a transformar em asilo.
A bonita e harmoniosa entrada do hospital é conservada até hoje com as mesmas características que a marcavam. A entrada não está interdita a ninguém, qualquer pessoa pode entrar e visitar aqueles corredores que nos mostram o sofrimento de milhares de pessoas que por ali tiveram de passar. Quem se concentrar bem, ainda consegue ouvir alguns sons de sofrimento, choros e gritos de alguém que lá entrou um dia e nunca mais conseguiu sair. Para trás ficaram as famílias e os amigos que lá os deixaram porque não sabiam como tratar aquela doença que tanto assusta.
Pelos corredores passeiam uns e outros que têm a liberdade de sair, mas fixam-nos nos olhos como se não fossemos do mesmo mundo e invadíssemos o seu espaço. As janelas altas e envidraçadas dão para um jardim que ninguém utiliza e as portas são trancadas a sete chaves. Pelas paredes vão aparecendo imagens de alguém que há muito foi esquecido, mas que ali pertenceu.
Quando se contornam os corredores encontra-se a secção de consultas externas, esquecida ao fundo daquela imensidão. Nota-se a simpatia das enfermeiras que conversam connosco, mas receiam falar demais, e isso, assusta-as, quando comentam: «Não estamos dentro de nenhum assunto, achava melhor falarem com o médico de serviço». Enquanto esperamos ser atendidos pelo médico, dois ou três doentes ali sentados olham-nos com a alegria de ver caras novas que possivelmente frequentam os mesmos sítios que eles.
Mais estranho se torna quando o médico de serviço se sente constrangido em prestar declarações. Começa por proibir gravações e máquinas fotográficas e tentou controlar tudo o que era escrito. Depois de algumas palavras entre os dentes, lá deixou escapar que, «dois terços dos doentes são crónicos, não há hipótese de cura e provavelmente não voltam a sair do hospital. A maioria sofre de esquizofrenia residual, doença muito complicada. Alguns são pessoas com 50/60 anos que não têm família e por isso, foram ficando permanentemente. São pessoas com poucos recursos económicos, normalmente de classes baixas que não têm possibilidades para pagar lares para idosos, e nós não os vamos pôr na rua, como deve calcular. Estão aqui internados alguns inimputáveis, mas tanto num caso como no outro não há violência física, porque estão todos devidamente medicados». Em relação aos tratamentos utilizados dentro do hospital foram algumas as alterações sofridas com a evolução da ciência, refere o médico que, «antigamente nos anos 60/70 eram utilizadas as curas de sono, tratamento passivo à base de amitriplinimico, que não tinha qualquer valor científico no tratamento das depressões, ou seja, enquanto dormiam amenizavam o sofrimento, mas quando acordavam o problema continuava lá. A hipnose foi um tratamento que nunca utilizamos, já os electrochoques foram muito utilizados e continuamos a utilizar mas com menos frequência, por exemplo, em casos de esquizofrenia residual».
Com esta mini entrevista quase que arrancada, a curiosidade vai aumentando. Pelos corredores, numa das portas trancadas, dizia: Enfermaria Júlio de Matos. Ao bater à porta, a enfermeira chefe recebe-nos com muita simpatia mas também algum receio. Entrando na enfermaria, tudo muda à nossa volta. São dezenas de pessoas que espreitam para ver quem chega. Nota-se que aguardam ansiosas por alguém que nunca aparece para lhes dar uma palavra de conforto. A tristeza nos olhares é notória, acompanhada de algum conformismo de quem está assim há tantos anos, que já nem sabem ser diferentes, ou «iguais». O cheiro é característico, misturando um hospital com um asilo, talvez seja fácil decifrar os odores existentes. São coisas que estão fechadas há muitos anos, frustrações, emoções, sensações, coisas que nem eles sabem bem onde as guardaram.
Naquele instante de alguma confusão, eis que se aproxima alguém muito simpático. O Sr. Mário, dirige-se a nós e começa por dizer que, «há coisas que se deviam saber, sou maníaco-depressivo e tenho que tomar medicamentos toda a vida. Há alturas da minha vida que estou deprimido e outras em que fico maníaco. Eu era animador cultural, tinha um bom emprego, mas bebia bastante álcool. Um dia separei-me da minha mulher e tentei suicidar-me. Melhorei mas nunca mais vi a minha filha. Ela estuda na escola superior de educação, mas tem vergonha de mim, nem sequer me quer ver. Eu queria que soubessem que não sou maluco, simplesmente tenho uma doença que me obriga a tomar medicamentos toda a vida. Tenho tendências suicidas e mesmo agora com tratamentos, várias vezes me tentei suicidar com os medicamentos, mas fazem-me lavagens ao estômago e fico bem. A última vês misturei álcool com medicamentos e atirei-me da Torre dos Clérigos. As pessoas precisam de saber destas coisas, porque nós não somos malucos, às vezes não temos forças para encarar este mundo que tanto nos magoa».
Sr. Mário tinha encontrado alguém com quem desabafar, poucas coisas o prendem à vida, só a saudade daquilo que nunca teve lhe dá forças para lutar e reconstruir tudo de novo. Foi nesse momento que nos mostrou alguns dos espaços de algum lazer existentes na enfermaria. Começou pela sala de convívio, que se torna assustadora pela solidão lá existente. Ninguém convivia, cada um no seu canto, pensam apáticos nos seus problemas, têm aprendido a viver sozinhos à muito tempo. A sala tem muitos bancos de madeira, algumas cadeiras, e uma televisão quase velha no canto da sala. Às poucas pessoas que lá estão, tanto lhes faz se a televisão é nova ou velha, porque quando olham para o ecrã, vêem tudo menos a programação diária. Ao fundo da sala há um jardim, lá estavam sentados uma meia dúzia de doentes, que não o podem apreciar, pois este está a monte há muitos anos. Aproveitam então para contar a vida deles desde que nasceram, e algumas tinham já os seus 70 anos. Outros, como uma jovem de vinte e poucos anos, olhavam o infinito, aquilo que lhe fugiu e que ela tenta encontrar nos seus pensamentos. De tudo o que perdeu são as lembranças que lhe restam.
Ali podemos encontrar de tudo, portadores do vírus HIV, problemas de carência levados ao extremo, ao ponto de andarem todos nus, pessoas que não falam, só ouvem rádio, outros a vida pregou-lhes partidas, como é o caso da D. Maria, que o senhorio lhe queria tirar a casa sem ela ter para onde ir, deixando-a num estado tal, que a senhora já via fantasmas em casa que a mandavam sair de lá. Enquanto ouvia-mos estas histórias tão deprimentes, eis que entra em fraldas mais um jovem. Vinha cedado, consigo os enfermeiros arrastavam soro.
Ao Sr. Mário já se tinha juntado a D. Maria que também nos mostrou o resto da enfermaria. A sala de jantar é asseada, normalmente arrumada por duas doentes que se prestam a essa tarefa. Ao fundo existe um móvel de cordas para puxar as coisas da parte de baixo da cozinha para a sala, e onde todos ajudam, nada custa.
As casas de banho são divididas por sexos, mas a idade nunca perdoa, são quatro paredes já muito gastas, onde existe uma sanita e uma aparadora, mas ninguém ainda se queixou das condições de higiene daquela enfermaria, tudo era conforme os gostos deles. Outras das grandes portas que estão trancadas são as dos quartos. Muito asseados, só lá se podia estar de noite. São divididos, homens a um lado e mulheres a outro. Cada quarto tem duas ou três camas, é um silêncio assustador, e ao fundo mais uma das janelas envidraçadas, mas estas têm grades, não há forma de fugir. Dali vêm a vida daqueles a quem chamam normais. Estes estão fechados, têm a liberdade condicionada por uns quadrados que os impedem de amanhecer com os sonhos e objectivos de vida que um ser humano deve ter. Estes são diferentes, estes sentem a vida de forma mais intensa, estes são sensíveis e são abandonados por isso. Estes doentes, ao verem os chamados normais despedirem-se e abandonarem a enfermaria, deixam cair lágrimas, lágrimas de quem já está habituado a que lhes virem as costas...


EDITORIAL

A SABEDORIA DO LOUCO VÊ-SE NA LOUCURA DO SÁBIO


O tema doenças psiquiátricas não foi escolhido por acaso. Se perdermos algum tempo a olhar à nossa volta, verificamos que a maioria das pessoas sofrem ou já sofreram de muitos dos sintomas tratados por psiquiatras. Mas o mais preocupante é o facto de todos admitirem que se trata de uma doença, mas continuarem a estigmatiza-la de forma a que, quem a realmente tem, a esconda para não se sentir observado por uma sociedade, onde já não se pode ser doente, para não ser posto de parte. Não acontece só nos empregos, acontece com amigos e colegas que lhes colocam rótulos de doentes mentais, atrasados, ou então, que argumentam que têm é preguiça de trabalhar e inventam depressões para não fazerem nada.
Também é de compreender que uma entidade patronal não queira dar trabalho a alguém doente, que a qualquer momento pode ficar em casa deprimido sem saber bem porquê, e nestes casos a empresa é prejudicada porque já não consegue produzir o que apriori estava estipulado. Mas o próprio empregado tendo baixa - que normalmente, nestes casos, os médicos não dão - acaba por ganhar muito menos e ficar prejudicado. Levanta-se a questão: Quantos empregados uma empresa tem de baixa sem terem doenças psiquiátricas, ou mesmo sem doença nenhuma? Bastantes, ainda por cima sem estarem doentes. Devia-se perguntar quem dá realmente prejuízo, os que a doença obriga a ficar de baixa, ou os que não têm nada? Pois é...
Estas pessoas pagam impostos como todos nós, têm os mesmos direitos, não têm que esconder um pequeno problema que não incomoda ninguém, nem é contagioso. O estado não costuma reparar nesta alta percentagem da sociedade que não pode viver sem acompanhamento médico e fármaco. Os medicamentos são caríssimos e em muitos casos imprescindíveis.
Estamos perante um problema que a todos diz respeito. Uma sociedade de stress pode causar doenças do foro sensorial e qualquer um tem de ser consciencioso e pensar que pode tocar a todos, de uma forma ou de outra. Pode ser o meu filho, mas também pode ser o meu Pai e não é pondo-os de parte na sociedade que vamos ser todos muito mais felizes e contentes. Os seres humanos têm falhas, todos falham de várias maneiras, não é escondendo-as que as resolvemos, mas sim sabendo viver com elas e tentar solucioná-las de forma a que todos possámos ter o nosso cantinho de felicidade.
Muito importante seria para quem consegue admitir as suas fraquezas, que não tivesse como recompensa ser despedido ou posto de parte. Só querem que os deixem viver a vida deles e que ninguém se dê ao trabalho de os analisar, para ver se são normais ou não. Afinal quem é normal? Alguém consegue responder? Pois é, não pode, porque se olharmos à nossa volta, devíamos conseguir ver que apesar de sermos todos diferentes, no fundo até somos todos iguais. Cada um tem o direito de extravasar a loucura à sua maneira desde que não interfira na loucura de ninguém.


CRÓNICA

VIVER TODOS OS DIAS ASSIM NÃO CANSA

Era uma vez, uma aldeia muito bonita no interior do Alentejo que se chamava Santo Antoninho dos Desprotegidos. Reza a lenda que o menino António, nascido e criado nas redondezas, tinha sido uma criança comum, até ao dia em que sua mãe se mata sem ninguém saber porquê. O seu pai já com uma certa idade nada sabia dizer ao filho, que teve de se fazer à vida para olhar pelo pai e ter dinheiro para comer. Sempre se achara muito parecido com a mãe e percebia bem quando ela ficava doente, era fraca para trabalhar no campo e ainda tinha de olhar pelo marido que às vezes gastava muito dinheiro em vinho e tabaco, sem falar nas vezes que lhes batia.
Um dia, depois da escola, Toninho – como era chamado - encontra a mãe deitada no chão com os pulsos cortados. Foi um dia que nunca mais esqueceu. A morte da mãe, a doença do pai, desgastaram a criança. Na Vila chamaram-lhe demónio. Diziam que ela estava possuída antes de morrer e todos começaram a rejeitá-los por isso.
O menino António começou a sofrer muito, ainda por cima sózinho no mundo, não encontrava forças nem apoio para caminhar na direcção certa. Começou por se sentir esquisito, não tinha vontade de fazer nada, tudo o cansava e chateava. Não se arranjava, deixou de fazer a barba e poucas vezes tomava banho. O seu mundo era realmente um mundo diferente, todos os seus pensamentos se centravam no mesmo. Não encontrava razão para viver e a dor era tão forte que não aguentava mais. No emprego, despediram-no e insultaram-no de bandalho, não lhe restava muitas alternativas.
Um dia, como tantos outros, ninguém mais lhe pôs a vista em cima. António estava perdido, queria perceber porque morreu a mãe e porque ele estava exactamente com as mesmas ideias suícidas que a mãe teve. Mas António não se ia matar, tinha jurado a si mesmo perceber o porquê da mãe o ter abandonado. Ele sentia a existência de um elo de ligação em toda essa história, mas a confusão mental era tanta que não conseguia articular nenhum pensamento.
Meses mais tarde e depois de ter andado completamente desesperado de sofrimento, começou a desfalecer e a perder algumas das suas faculdades mentais. Quando alguém lhe dirigia a palavra, não dizia coisa com coisa. Um dia, numa terra mais desenvolvida das redondezas, levaram-no para uma casa de apoio aos sem abrigo. Foi-lhe prestado auxilio médico, mas o problema dele, não era não ter abrigo, mas sim um esgotamento mental.
Nessa casa, os médicos perceberam que António tinha grandes distúrbios emocionais, mas ali não havia nenhum psiquiatra que o pudesse tratar. Ali foi ficando a conviver com mais alguns que não percebendo de doenças mentais o acabaram por pôr de parte, sem o ajudarem em nada.
Todos os dias António tentava conversar e procurar alguém que sentisse o mesmo que ele, necessitava de se encontrar e perceber que também pertence a este mundo. Mas o que ele procurava nunca foi encontrado, pelo contrário, riam-se dele pelas costas e diziam que era um anormal, era constantemente subestimado. Um dia, tentou pôr fim a toda aquela «loucura» e tomou um frasco de comprimidos. Foi levado para o hospital pelos continos do centro e com uma lavagem ao estômago ficou um mês em coma. Ao fim de um mês começou a reagir e foi logo encaminhado para os serviços de psiquiatria do hospital, onde com a ajuda de medicamentos próprios, começou a ter algum interesse por uma vida que tanto o tinha feito sofrer.
Na enfermaria do hospital, passava os dias em contacto com pessoas que se preocupavam e interessavam pelas mesmas coisas, além de se identificar com eles parecia-lhe que, de alguma forma, o compreendiam e sentiam o mesmo que ele. O interesse pela vida crescia ao mesmo tempo que crescia o interesse pelo que a mãe tinha sentido antes de morrer. Enquanto esteve internado, aproveitou para ler sobre doenças psiquiátricas e começou a perceber muito bem o que até ali era uma incógnita. António era uma pessoa depressiva e periodicamente era afectado pela depressão, associada ou não a alguma perturbação emocional. Esta doença era hereditária e estava resolvido o enigma do suicídio da mãe. Tinha-se suicidado porque não sabia viver num mundo onde ninguém a compreendia e ainda era maltratada por isso.
Assim que teve alta, devidamente medicado, António regressou à sua Terra Natal, que estava um pouco mais desenvolvida, mas a sua geração tinha emigrado. Na sua aldeia lá estava uma velha casa abandonada, a casa onde um dia sua mãe se suicidara e mais tarde o pai acabara por morrer. Depois de alguns anos de trabalho, conseguiu reconstruir a casa de forma a albergar todos aqueles que a sociedade não compreendesse por terem distúrbios emocionais. Aquela casa transformou-se num lugar lindo, trabalhavam no campo e quem conseguisse arranjava emprego na vila, podiam sair sempre que quisessem e tivessem vontade. À volta da casa existiam jardins lindos construídos por alguns dos residentes e a harmonia reinava naquele sítio.
Os habitantes da vila sentiram-se muito orgulhosos por aquela obra ser feita por alguém da terra e já nem se lembravam que um dia o tinham maltratado, afinal assim sempre tinham mais habitantes lá perto e já não importava se eram diferentes, alguns vizinhos até ajudavam monetariamente. Perceberam enfim, que são pessoas que ali estão e que também sabem contribuir para a sociedade.
Com o passar dos anos o Sr. Antoninho - como ainda lhe chamavam – faleceu, era muito idoso e a idade não perdoa. Os residentes continuaram a obra por ele iniciada, considerando-o um Santo. Foi a partir daí que lhe puseram o nome de Santo Antoninho dos Desprotegidos, o que acabou por dar nome à aldeia.
Hoje em dia, depois de sofrer algumas alterações, a casa continua a ser residida por pessoas «idênticas», mas quem a subsidia é a Autarquia local, que ao ver alguma mediatização resolveu finalmente ajudar, com a condição de não alterar nada ao nível do funcionamento interno, colocou um psiquiatra a viver com eles, para melhor administração de medicamentos que hoje são mais e melhores. Esta casa, acima de tudo, devia fazer-nos pensar mais em quem nos rodeia e não só no nosso, pouco garantido e efectivo, bem estar.


ARTIGO DE FUNDO

SIMPLESMENTE SÓS !

Muito se diz e escreve sobre os problemas psicológicos que hoje em dia estão tanto na moda. São consultas psiquiátricas para cá, antidepressivos para lá, até chegarmos ao ponto de confundir onde acaba a moda e começa a doença.
São muitas as «mamãs» que levam os filhos ao psicólogo «por dá cá aquela palha». Ou vão fazer testes, ou porque não brincam com o cão que foi tão caro, enfim, vão ao psicólogo como quem vai ao médico de família com uma amigdalite. É claro que quem ganha com tudo isto são os psicólogos que cobram quantias exorbitantes por consultas cada vez menos interessantes. Por exemplo, não imagino um psicólogo a dizer: - O seu filho não tem nenhum problema psicológico, guarde o dinheiro e vá para casa com ele, olhe que há muita gente que precisava de vir ao médico e não vem, porque precisa de dar de comer aos filhos para não ficarem com mais problemas.
Claro que ninguém vai dizer isto, por mais que o pense. Mas a realidade é esta. As crianças são o futuro do país e se não olharmos por elas, depois acusam-nas de rascas e pouco cultas. É claro que também podem esperar por uma consulta no hospital, mas se tiverem sorte arriscam-se a ir para a secção de pediatria com idade de ir para a tropa.
Os nossos jovens são filhos de uma liberdade arrancada a ferros e fogo, mas se são livres por um lado, sofrem pelo outro, com estilhaços de uma guerra que não era deles e onde estiveram os pais a dar o corpo e tudo de bom que aos 20 anos ainda se guarda. Estilhaços de uma luta das mulheres que a toda a força mostraram os seus valores e arrecadaram os direitos que lhes eram assistidos. Estes jovens nasceram na transição de uma época, onde tudo era camuflado e estão presentes num mundo em que tudo lhes é permitido, o que se torna muito confuso na cabeça deles. Estes jovens não têm onde se apoiarem, os pais lutaram pelo que têm e é-lhes exigido que continuem. Mas ainda estão confusos, são os primeiros completamente livres do País, não se baseiam em ninguém, são eles próprios e as confusões mentais que os outros lhes criam.
Jovens como estes, apanharam as frustrações do pai, da mãe e as suas dificuldades. Foi-lhes atirado à cara que tudo o que têm se deve aos pais, mas os pais esquecem-se que transportaram para os filhos tudo o que os assusta. Um jovem além da vida de adolescente, ainda tem o fardo da vida dos pais, que lutaram tanto para eles agora terem as suas vidas. Enfim, há que admitir que é tudo muito confuso nas cabecinhas de alguém, que não viveu na mesma altura. É precisamente aqui que começam as crises existenciais da puberdade, ou seja, quem sou eu, que faço aqui, não pedi para nascer, não vos compreendo, e identifico-me com pouca coisa. É nesta altura que os pais costumam dizer que os filhos estão metidos em drogas, talvez aí então se apercebam que os filhos tinham sentimentos e ninguém teve tempo para os ver, tinham sempre que trabalhar, agora até estão a ganhar melhor e pronto! Mas o filho descobriu que o que a mãe e o pai tinham lutado, já nada tinha haver com o que fazem, preocuparam-se agora em levar os putos ao psiquiatra, porque as colegas também os levam e ficam melhores. O que os filhos sentiram não importou, são novos, sabem lá o que é sofrer. Nós fomos para a guerra, naquela altura não nos mandavam a psiquiatras e eu estou aqui.
Pois está, mas esquece-se que à volta dele estão muitos mais e todos com sentimentos diferentes.